segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Mamma Calábria

Os filhos da Calábria retornam para o Natal. Voltam das importantes cidades do norte onde a vida parece dizer-lhes sim: Roma, Pisa, Bolonha, Gênova, Milão e Turim. Uns Ulisses, outros Don Quixotes, todos guerreiros: os filhos da Calábria retornam ao colo de suas mães para festejar o nascimento de Gesù Bambino. O verde-vivo rasteiro da terra é o tapete invernal dos montes calabreses. Estende-se sem vergonha e sem fim por planuras e penhascos, cobrindo tudo o que vê e tudo o quanto pode. As árvores emagrecem no inverno, perdem folhas e frutos, são troncos e galhos secos enrijecidos como as galinhas depenadas para a ceia de Natal. Piuí. Piuí. O trem atravessa a comarca: de um lado as montanhas em contornos de nanquim, e do outro a ribanceira com o mar que á azul no verão e verde no inverno. O verde-vivo do tapete invernal dos montes calabreses colore o mar. Colore os olhos daqueles que olham pela janela do trem. Colore a melancolia das mães que esperam o ano todo o retorno de suas crias.
Na Calábria camponesa as casas são labirintos: três, quatro, cinco andares. Na expectativa de que um dia os filhos regressem definitivamente com suas esposas e crianças para habitarem o lar, os pais ampliam o concreto, constroem novos cômodos, ulteriores escadas e tantas janelas em continuidade. Das janelas do primeiro andar acompanham as estações, observam o verde da terra que seca no verão, os tantos pés de figo da Índia com as cabras que pastam ao redor, o vento mediterrâneo que balança as laranjeiras em flor, e a colheita outonal da azeitona. Das suas janelas Mamma Calábria enxerga o mar verde de inverno e o trem que traz os filhos para a festa de Natal. Piuí. Piuí.
Até o dia dos Três Reis Magos Mamma Calábria é em festa, beija e abraça suas criaturas e cozinha para elas como quem cozinha a oferenda para o santo. Calábria colorida, perfumada, saborosa. Mas como a alegria tem prazo de validade fato está que o mesmo trem que atravessou esplanadas e montes como a estrela cadente de Belém, agora parte com os filhos do campo, estudantes e trabalhadores rumo ao norte. As casas calabresas estão sempre no reboco, a reforma dura anos e suas tantas janelas continuarão fechadas. Os filhos da Calábria vêm e vão, poucos permanecem. Mamma Calábria suspira, entristecida, pelas suas enormes casas vazias.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

buon camino, compañero!

Depois do post "Samba da Compostela", voltei ao blog com um olhar menos crítico e mais sensível sobre o Caminho de Santiago de Compostela. Porque, sem dúvida, a beleza e o sentimento do sagrado são elementos de inquestionável presença neste percurso milenar...

Dessa forma, através das minhas fotografias convido os leitores a conhecerem o Santiago dos meus olhos. Para evitar descrições nas imagens antecipo que retratam duas extensas localidades: as comunidades autônomas León-Castilla e a Galícia, onde, na província de La Coruña, está situada a cidade Santiago de Compostela (a última fotografia é a catedral de Santiago). Em linhas gerais, a primeira região é caracterizada, principalmente, por extensas áreas planas, de plantação de trigo, cevada, girassol... a segunda, uma região montanhosa, é caracterizada por bosques, montes, muito verde e flores.

Além disso, dois parênteses: uma imagem por testemunha - eu e meu amigo Felipe com a prova do crime (quatro quilos de ameixa que colhemos de uma árvore no jardim de uma casa aparentemente abandonada). E em Astorga, dois monumentos: o palácio realizado por Gaudì para um bispo espanhol e uma igreja católica com as marcas da Inquisição - buracos na parede por onde os prisioneiros "hereges" recebiam alimentos dos peregrinos que passavam por ali.

Entonces, é hora... Buon Camino, compañero! (este é o "slogan" do peregrino...)






































sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Lições de Cinema

Francesco Piccolo, escritor e roteirista italiano (entre os filmes que escreveu estão “Ágata e a Tempestade”, de Silvio Soldini, “O Crocodilo”, de Nanni Moretti e “Caos Calmo”, de Antonio Luigi Grimaldi) comenta no prefácio do seu primeiro livro, “scrivere è un tic” (Ed. Minimum Fax, 1994): Eu tinha a sensação que colecionar reflexões de escritores sobre o ato de escrever me ajudaria a parecer-me com eles...

No livro, Piccolo explica esse seu vício de colecionar anotações sobre métodos de escritores famosos relatados em entrevistas ou compilados em livros teóricos. Desde pequeno ele queria ser escritor e durante a adolescência a intenção de juntar as centenas de conceitos sobre o ofício encontraria eco na fase adulta, momento em que desenvolveria a sua própria técnica artística.

Recordando-me desta conduta de Piccolo decidi postar no blog reflexões de alguns renomados cineastas sobre a sétima arte. No ano passado, a editora italiana Castoro publicou “Lezioni di cinema”, a compilação transcrita das lições de cinema do Festival de Cannes realizadas por alguns mestres do cinema mundial entre 1991 e 2006. Não sei se o livro também foi publicado no Brasil (fiz uma rápida pesquisa na internet e não encontrei nada). De qualquer forma advogo: este livro merece ser lido.

Enfim, confesso: assim como Piccolo eu também coleciono reflexões. Mas de cineastas que admiro. Isto por razões várias que não somente a busca por uma metodologia própria, mas, e principalmente, a possibilidade de haver instrumentos sólidos para interpretar e compreender melhor as suas obras. Abaixo, uma rápida passagem pelas lições de cinema de Cannes...

O diretor deve consentir-se solitário. Retirar-se na sua solidão como quando Akira Kurosawa prepara um enquadramento. Esta dimensão de solidão da criação é uma coisa muito difícil de ser aceita no cinema.

FRANCESCO ROSI

Em um filme que classificadamente se divide em três etapas (escritura, filmagem e montagem), prefiro aquilo que existe antes da escritura, aquele estado em que se procura o início de um filme, em que se viaja para encontrar uma paisagem na qual se sabe que é possível fazer o filme... Ainda não existe nada, existem elementos fragmentados, pequenas estórias que foram vistas, ou uma paisagem da qual nos recordamos, ou um ator com quem temos vontade de trabalhar. E depois, o resto, tudo aquilo que vem depois, principalmente a escritura, me dão medo e não me agradam. Eu não gosto nem mesmo das filmagens, são muito angustiantes. A montagem, ao contrário, é magnífica. Mas entre a montagem final e esta liberdade do ponto de partida no qual ainda não existe nada, eu não me sinto bem.

WIM WENDERS

Procuro sempre a música para o filme antes de começarem as filmagens para que ela me sirva de referência. A música é constantemente presente no meu espírito e dessa forma é possível construir o ritmo de um filme de modo que Chris Doyle (diretor de fotografia) saiba como fazer dançar a câmera. Trabalhar com Chris Doyle é como trabalhar com um músico de jazz. Não se fala de iluminação, não se fala de ângulo do enquadramento, porque trabalhamos juntos há mais de dez anos e nos conhecemos à perfeição. A ele basta conhecer o ritmo e a cor do filme – não o vermelho ou o azul, mas a sensação que proporciona o filme, a sua emoção.

WONG KAR-WAI

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Bandido anos 2000


"O terceiro mundo vai explodir. Quem tiver de sapato não sobra!", foi o grito que Rogério Sganzerla colocou na boca do seu personagem nano com charuto no filme O Bandido da Luz Vermelha. Inesquecível e profético: “A solução pro Brasil é o extermínio total, eu sou poeta, eu vejo, o terceiro mundo vai explodir, vai explodir!”.

Quarenta anos se passaram e o grito aflito do Brasil ainda é possante. O berro da miséria aflita ecoa no terceiro mundo: América Latina, Ásia, África, Oriente Médio, Europa do Leste... Mas por questões históricas o rugido do nano de Sganzerla se estende hoje sobre outros territórios, ultrapassando as fronteiras do subdesenvolvimento. A cada barca clandestina naufragada nas costas do primeiro mundo com dezenas de desesperados utópicos eu escuto o grito de Sganzerla. A cada imigrado humilhado e massacrado, aglomerados de homens-ratos nos bueiros internacionais, eu escuto o grito de Sganzerla. Dezenas de seres humanos que atravessam desertos e ultrapassam barreiras em busca do sonho americano. O urro profético da humanidade capitalizada outorga a governos neonazistas a solução para a luta de classes contemporânea. Prezado Sganzerla, ironicamente o seu grito assume hoje outra direção, que, na verdade, não é outra, mas a contra-mão da primeira: o primeiro mundo vai explodir! É isso que penso cada vez que caminho pelas ruas...

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Macunaíma (re)engolido pelo gigante


E pela emancipação brasileira da primazia do retrato do colonizado



PS - o texto também foi publicado na Cinequanon

O Festival Internacional de Cinema de Roma inaugurou a sua terceira edição na quarta-feira, 22.10, com uma festa brasileira na Piazza Navona. Com direção artística do gringo da Tropicália Arto Lindsay e cenografia do artista plástico brasileiro Ernesto Neto o evento contou com a participação de Vanessa da Mata e os blocos Ilê Aiyê e Spok Frevo Orquestra. Um carnaval brasileiro de outono em Roma era a proposta da curadora da sessão Focus sul Brasile, Gaia Morrione, para a abertura do festival de cinema que está se afirmando no país. Quando começou se chamava Festa Internazionale di Roma e este ano mudou o nome para Festival Internazionale del Cinema di Roma. O evento está alçando vôos... mas a linha ideológica permanece a mesma: uma festa de cinema popular, com filmes que agradam o grande público (existe também o panorama “outro cinema”, com curadoria de Mario Sesti, que oferece ao espectador filmes mais experimentais). A premiação é decidida pelo voto do público e no ano passado o filme vencedor foi o americano “Juno”, de Jason Reitman.

Muito bem, e nesta história toda o que tem a ver o carnaval brasileiro em pleno outono na Piazza Navona? Pois bem, desde o ano passado o festival dedica um panorama à tradição de um determinado país. A intenção verbalizada pela curadora Gaia Morrone é a de recolher fragmentos que considera significativos da cultura deste país e apresentá-los ao público através de eventos cinematográficos e musicais, debates, mostras, etc. O ano passado o Focus foi a Índia e este ano esta sendo a vez do Brasilzão mostrar a sua cara para os gringos. Vai que é sua Brasil il il il ! Sejamos claros: em poucas palavras, esta sessão se mostra interessada em revelar o exotismo de países emergentes com quem a Itália mantém relações econômicas, sociais e culturais. Aliás, quantos imigrantes indianos existem no país? E brasileiros? A escolha da nação homenageada na sessão Focus não é, portanto, algo casual. Além disso, propõe de maneira ostensiva um olhar comercialmente vulgar sobre a vitalidade, a criatividade e a contemporaneidade na produção artística de nações classificadas como terceiro-mundistas. Não é à toa, portanto, que tais iniciativas sejam taxadas pelo próprio público europeu como “evento étnico” (termo inventado pelos anglo-saxões para deslegitimar as manifestações artísticas da periferia do capital).

Voltando ao Focus sul Brasilzão: qual seria a previsibilidade em um evento dedicado ao Brasil no exterior? Quais seriam as temáticas predominantes que se consideram dignas de serem as nossas porta-vozes internacionais? Futebol, favelas, samba, carnaval, bossa-nova e candomblé? Acertou. Além disso, Caetano Veloso para os mais cults. Esta é a festa do Brasil na Festa do Cinema de Roma. Predominantemente banal e financiada pelo Ministério da Cultura brasileiro e Ancine.

No que diz respeito ao cinema. Perante o quadro da produção cinematográfica abundante e plural que caracteriza nossos últimos anos (sábado foi publicado na "Folha de SP" que só a Mostra de Cinema de SP este ano está exibindo 70 filmes brasileiros), a curadoria romana, auxiliada pelos críticos brasileiros Pedro Butcher e José Carlos Avellar, priorizou documentários sobre nossos artistas e intelectuais. De 22 filmes selecionados para representar o Brasil em Roma, 15 são documentários dentre os quais 12 são focados em expoentes de nossa música popular brasileira e de nossa produção intelectual. Não pretendo de maneira alguma deslegitimar tais documentários de representarem dignamente o nosso cinema, e tampouco questionar as suas qualidades artísticas. A questão que merece ser apontada nesta seleção é a sua abominável ideologia: escolhas que explicitam o caráter didático e mercantilista da curadoria tendo por fim a exportação da música popular brasileira, principalmente, e a reiteração de nossos estereótipos culturais. Uma curadoria, portanto, que não pretendeu estimar o cinema brasileiro, que passou longe de Beto Brant, Karim Aïnouz, Marcelo Gomes e Lais Bodansky, para citar alguns nomes importantes da cena contemporânea, e preferiu investir na divulgação vulgar de expoentes (ainda que magistrais) da nossa cultura. Para se camuflar a sessão recebeu o timbre de Retrospectiva e está ostentando nas telas italianas todos os nossos estigmas, com a funesta desculpa de querer educar o público ignorante. A lista é farta: documentário sobre futebol, sobre Tom Jobim, sobre a bossa-nova, sobre Vinícius de Moraes; documentário sobre Paulinho da Viola, sobre Nelson Freire, sobre Sérgio Buarque de Holanda, sobre Tom Zé; documentário sobre o tal império baiano: Caetano Veloso, que também realizou um show na cidade, sobre Maria Bethânia e outro ainda sobre os Doces Bárbaros (além da ficção “Ó Pai Ó”, puro axé e exotismo no Pelourinho, produzido pela ex-mulher de Caetano, Paula Lavigne, que também assina a produção do documentário sobre o ex-marido); tem também documentário sobre Oscar Niemayer e sobre o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger, que apesar de tudo, é merecidamente homenageado com a exposição de suas fotografias realizadas no nordeste brasileiro nos anos 40 e 50.

Sei que vivo a contradição do meu nacionalismo. Não posso negar a ostensiva emoção que sinto ao reassistir a estes documentários em sala estrangeira, seja porque admiro a qualidade de seus discursos estéticos, seja porque revivo com eles a minha história cultural. Não posso ignorar o orgulho que experimento quando presencio a divulgação de meus ídolos conterrâneos em território internacional. Mas apesar de nacionalista não sou estúpida. Não posso concordar com a instrumentalização do cinema brasileiro, com a sua subjugação por uma curadoria pouco disposta a valorizá-lo e muito interessada em estigmatizá-lo. Apesar de patriota não posso consentir que fortaleçamos para as consciências internacionais o retrato do colonizado, como o define Albert Memmi em seu ensaio “O retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador”. Neste sentido, esta mesma curadoria possui duas inexoráveis facetas. Uma é a italiana, que reproduz o retrato do colonizador e não se constrange por isso. Ao contrário, faz questão de sublinhar o caráter étnico do evento. A outra faceta, no entanto, é mais grave: é aquela representada pelos membros brasileiros cujos nomes foram anteriormente citados. Essa curadoria tropical revela em si uma nociva e mítica contradição: ao selecionar obras que divulgam nossos artistas e nossa cultura no velho continente, ou seja, a ação quimérica de tentar extinguir nosso anonimato e nos inserir no centro do capital, tragicamente reproduziu o retrato do colonizado. O que esta curadoria fez através do nosso cinema foi enfatizar os estereótipos culturais que nos mantém atrelados à condição de nação colonizada, subdesenvolvida, e, portanto, à margem do capital. Na festa do Cinema de Roma o Brasil comemora o seu complexo de dependência, sua colonizabilidade. No carnaval do cinema de Roma não é dia de festa não senhor!

(Imagem: Urutu. Tarsila do Amaral, 1928)

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

"Mamma Roma"


Mamma Roma. Pier Paolo Pasolini, 1962.

Um filme humanista

Mamma Roma é um filme notoriamente humanista que personifica na figura de uma prostituta e seu filho o drama do subproletariado italiano dos anos 60. A prostituta é Mamma Roma, interpretada por Anna Magnani. Uma mulher enérgica, explosiva, que sonha se libertar da opressão de seu cafetão e reaver um relacionamento profundo com seu filho Ettore. Mamma Roma saiu do campo e foi para capital romana. Lá trabalha numa banca de legumes e de vez em quando se prostitui por exigência de Carmine, o gigolô. Todo seu investimento financeiro e emocional é voltado para Ettore: matricula-o num colégio, arranja-lhe trabalho, compra-lhe presentes, dá-lhe dinheiro, cuidado, amor. Mamma Roma é a mãe apaixonada que se sacrifica por seu filho.
Ettore é um garoto abandonado de si mesmo. Não se interessa por nada que o mundo lhe possa oferecer. Larga a escola e o emprego que a mãe lhe arranjou. Caminha pela cidade com seu grupo de adolescentes marginais. A única coisa que mobiliza a personagem é a paixão que sente por Bruna, uma garota sexualmente liberada.

A narrativa se desenrola a partir da relação mãe e filho, dos conflitos, sentimentos e expectativas que surgem desse embate, considerando, evidentemente, tratar-se de personagens de baixos estratos sociais.

A história se passa na periferia de Roma. As personagens, assim como aquelas dos filmes neo-realistas, perambulam pelas ruas. Nessa perambulação, a câmera focaliza detalhes arquitetônicos e sociais da cidade: cortiços, ruas, praças, monumentos, comércio, etc. Alguns registros são quase documentais. É o caso, por exemplo, da cena em que Ettore vende os discos da mãe num comércio ilegal: o cenário naturalista e o modo como o comerciante negocia a mercadoria com o garoto ilustram uma realidade existente na então periferia de Roma.

O humanismo no filme transita entre a denúncia social e a busca de um sentido existencial para o homem. A denuncia social é explicitada pelas más condições de trabalho, moradia e assistencialismo que todas as personagens enfrentam. Seja Mamma Roma, sejam Biancafiore, os amigos de Ettore ou Carmine, todos são condenados por sua classe social. São marginais fadados ao sofrimento, à miséria, à morte. Por outro lado, o filme também apresenta um humanismo filosófico que, alicerçado na concepção de sacralidade, busca significados existenciais para o ser humano. A personagem que mais transita por essa investigação é Ettore. Ele é dono de uma pureza mítica, uma personagem desinteressada dos jogos e necessidades do mundo. Sua candura e romantismo atingem significado quando se envolve com Bruna e tenta protegê-la. Para Ettore, um possível sentido que sua vida possa ter está na paixão que sente pela garota. A cena mais representativa desse humanismo filosófico é a que Ettore dá a Bruna um colar de ouro. Após roubar os discos de sua mãe e vendê-los no comércio, Ettore compra o colar prometido para Bruna. Ao recebê-lo a garota olha o pingente e diz: “Nossa Senhora e o menino Jesus!” e o coloca no pescoço. Um plano próximo de seu colo mostra sua blusa decotada e parte dos seios aparecendo. Bruna é uma garota sexualmente liberada. “Todos conhecem a Bruna, até no Japão já ouviram falar dela”, comenta um amigo de Ettore. No entanto, o garoto em sua inocência simbólica entrega-lhe a Nossa Senhora com o Menino. Essa sacralização da personagem ilustra a visão que Pasolini tem dos marginais: embora veja neles a resultante mortificada das lutas sociais, reconhece, no entanto, que nesta aparente deterioração existe uma peculiar sacralidade.

A estética

O primeiro plano do filme é um plano médio de três porcos arrumados com laços e chapéu sendo empurrados por uma vassoura pelas mãos de uma mulher: é Mamma Roma, que em over diz: “Carmine!”. O plano seguinte é um geral da mesa da festa de casamento de Carmine em que se vêem muitos convidados. A voz over continua: “Carmine, mostra a sua esposa aos nossos irmãos!”. Então, Mamma Roma apresenta os porcos. Carmine responde: “Tá! Os irmãos da Itália?”. Mamma Roma ironiza: “Quê? Qual Itália?”. Essa primeira seqüência é contundente e de um teor político-ideológico forte. Os porcos são apresentados como parentes do noivo. Isso permite uma caracterização animalizada dos camponeses italianos. No entanto, em seguida, os porcos são apresentados como irmãos da Itália e a ironia que se estabelece no diálogo permite associar os animais a figuras de poder italianas. Mas essa idéia ainda é embrionária. Em 1970, Pasolini realizará Pocilga, onde vai relacionar diretamente os porcos à elite nazista (e fascista italiana).

Ainda na seqüência do casamento Pasolini constrói um diálogo a base de cantos. Quando Mamma Roma comenta que a missa católica deveria ser cantada, alguém diz: “Mamma Roma, cante alguma coisa”. Inicia-se então um diálogo cantado entre Mamma Roma, Carmine e Clementine, sua noiva. É um diálogo de ameaças, desabafos e provocações pessoais. É interessante que Pasolini, no início dos anos 50, escreveu um livro chamado “Il sogno di uma cosa” (publicado somente em 62) no qual recria numa linguagem poética o universo camponês, onde a canção tem um papel fundamental. A seqüência comentada acima resgata um pouco desse universo romântico e idealizado que Pasolini construía sobre o campo, presente em muitos poemas oferecidos à sua mãe (camponesa, nascida em Friuli).

A decupagem de Pasolini não valoriza a construção espacial. Em alguns momentos o espectador perde a noção do espaço da cena e a localização das personagens nesse espaço. É o caso da cena do casamento em que diversos planos próximos de pessoas conversando são intercalados com o plano geral do salão. Os planos próximos ficam soltos no espaço e não conseguimos localizar as personagens quando o quadro abre para o geral. No filme é recorrente a continuidade do discurso ser simultânea à descontinuidade espacial...
Outra característica marcante da decupagem de Pasolini é a valorização de closes nas personagens e o seu isolamento no quadro. Com exceção de alguns planos conjuntos, a maioria dos diálogos se dá em campo-contra-campo. São poucos os planos em que as personagens conversam no mesmo quadro. Essa característica, aliada a descontinuidade espacial, torna a montagem um elemento importante e fortemente presente na narrativa do filme. É o caso da cena em que Mamma Roma vai buscar seu filho no parque de diversões. De um lado existem os planos da mãe, e de outro, os do filho. Ela o vê e o segue. Ele anda e conversa com os amigos. Em seguida, mãe e filho conversam em campo-contra-campo. O fundo do quadro nunca é o mesmo. Mamma Roma e Ettore parecem, em diversos momentos, estarem em lugares diferentes. Não há sequer um plano em toda a seqüência que abarque conjuntamente ambas a personagens, situando-as no espaço. A montagem de Nino Baragli é estilizada e evidente. Em meados dos anos 60 Pasolini desenvolve o conceito de “cinema de poesia”, que, grosso modo, seria o cinema que transparecesse a sua linguagem, que evidenciasse seus mecanismos, principalmente a câmera e a montagem. Esta teoria foi proclamada pela primeira vez no Festival de Cinema de Pesaro em 1965 e está contida no seu livro “Empirismo Eretico”. Mamma Roma, no entanto, realizado em 1962, já é um filme poético. A montagem de Nino Baragli salta aos olhos, ainda que busque uma linearidade narrativa.

Uma seqüência importante do ponto de vista da linguagem fílmica e da construção dramática é a que Mamma Roma e Ettore dançam tango no quarto. É uma seqüência que se preocupa com a construção espacial, visto que as personagens percorrem todo o quarto. A maioria dos enquadramentos possui mãe e filho num mesmo plano, elemento escasso no filme, e dessa forma os diálogos se dão com as personagens abraçadas, próximas. É um momento de intimidade, amizade e cumplicidade entre elas. A música tema do filme, “Violino Cigano” na voz de Joselito, colabora para transformar essa seqüência num momento de lirismo e poesia.

Um plano-seqüência ímpar no filme é quando Mamma Roma sai às ruas para se prostituir. Ela está sentada com seu grupo de amigas quando impulsivamente se levanta e diz que vai embora. Mamma Roma começa andar e é acompanhada por Biancafiore. Depois Biancafiore se despede e se afasta. Entra no quadro um policial, que ocupa o lugar da amiga que se foi, ambos andam e conversam. Mamma Roma lhe conta a sua vida e em seguida o policial é substituído por outro homem, que caminha ao lado da personagem, continuando a conversa já iniciada. Por último, um grupo de quatro pessoas substitui o último homem e caminha com Mamma Roma até que a seqüência acabe. Durante todo o trajeto, enquanto Mamma Roma caminha e as personagens entram e saem de quadro, a câmera realiza travellings de afastamento e movimentos circulares que se aproximam de uma dança. O plano-seqüência dura quatro minutos e meio. A elaboração pictórica de Pasolini é ostensiva: as personagens, no primeiro plano, são iluminadas e destacadas de um fundo negro. Nesse fundo, dezenas de pontos luminosos provenientes dos postes de luz formam desenhos abstratos. A composição espacial é abolida. Conforme a câmera baila, o fundo do quadro parece adquirir liberdade e adquire movimentos ora mais velozes ora menos, com os flashes de luzes rabiscando no espaço fantástico. Essa é uma seqüência que faz jus ao conceito de “cinema de poesia”, já comentado acima.

O sagrado como condição ou destino de suas personagens é um traço marcante na obra de Pasolini e, especialmente, em Mamma Roma, Accattone, A Ricota, O Evangelho Segundo São Mateus, Gaviões e Passarinhos, O que são as nuvens?, A Terra Vista da Lua e A Sequência da Flor de Papel. Como já foi dito, Pasolini vê no subproletariado a resultante mortificada das lutas sociais aliada a uma pureza simbólica. Este sentimento do sagrado é explicitado por alguns elementos estéticos. A fotografia extremamente luminosa de Tonino Delli Colli é um deles ( Tonino também fez a fotografia de O Evangelho Segundo São Mateus, utilizando-se dos mesmos princípios de iluminação). O sagrado-figurativo também é evidenciado pelos enquadramentos que enfocam as personagens como figuras de arte sacra, como por exemplo, a cena do casamento de Carmine. O plano geral enquadra a mesa comprida com os convidados. A parede, ao fundo, possui uma decoração que simula uma porta ou um vitral circular típicos de Igrejas Católicas. É exagero dizer que o quadro ilustra a Santa Ceia, mas não é errado dizer que há uma sacralização na imagem. O momento de maior apelo metafísico é a última seqüência do filme, em que Ettore morre. O garoto foi pego em flagrante, roubando. Por isso vai para a prisão. Como está doente, fica numa ala para recuperação. Ao ouvir um homem cantando “violino cigano”, Ettore se emociona e reage impulsivamente querendo sair do lugar para se encontrar com sua mãe. Como punição pelo mau comportamento, o garoto é preso em uma solitária, onde passa a noite inteira. Ettore é amarrado deitado, com os braços abertos e as pernas unidas, lembrando Cristo na cruz. A sala é escura, e pela janela entra luz suficiente para iluminar a criatura, que grita, lamenta e chama por sua mãe. “Mamma , estou morrendo... por quê eles fizeram isso comigo?”. A montagem intercala planos de Ettore agonizando e planos de Mamma Roma pensando no filho preso. Na solitária, a câmera realiza três movimentos semelhantes que valorizam a composição sacralizada da imagem: ela sai de um plano fechado no rosto de Ettore e num trevelling de afastamento cria uma imagem da cruz em perspectiva e faz uma referência explícita à pintura quatrocentista de Andrea Mantegna: “Cristo Morto”. A cada movimento da câmera de Pasolini a condição física, psíquica e emocional do garoto é diferente, até que no último movimento Ettore já está morto. A trilha sonora de Vivaldi sacraliza ainda mais o momento. O espectador se sente comovido, apiedado. Ettore foi apresentado como um garoto carismático, dono de uma candura emblemática. A estrutura repressivo-social o eliminou, assim como fez com Jesus Cristo. O último plano do filme é Mamma Roma, desesperada com a morte do filho, olhando pela janela de seu apartamento a cidade de Roma. O que vê? Um plano geral fixo mostra prédios e construções romanas, uma cidade que está se expandindo para as periferias. Mas no centro do quadro, afirma-se impotente a Catedral de São Pedro. E Mamma Roma a olha com uma expressão desesperada, é como se questionasse sua fé ao mesmo tempo em que se resigna diante de Deus e do destino que lhe confiou.
É muito comum na obra de Pasolini o uso da alegoria e da metáfora. Em Mamma Roma se poderia dizer que a personagem que leva o nome do filme é a personificação da cidade de Roma, cujos filhos morrem como Ettore, oprimidos pela miséria e injustiça social.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A propósito de liberdade

O filme era de ficção, com roteiro definido e tudo o mais. Todavia, Pasquale possui um talento incrível para improvisar e roubar da realidade um material precioso. Fiz assistência de direção no seu filme que rodamos na Sicília no mês passado. Uma história de amor tragicômica que ironiza o catolicismo, mas não só. Um filme de humor cínico: dois losers, Maria e Manlio, são voluntários em uma paróquia e levam a hóstia à casa de velhinhos doentes. Eles vivem aventuras, descobrem o rock, a beleza. Surge entre eles uma história de amor torta. Em uma manhã, enquanto tomávamos o café, Pasquale decidiu: Vamos à casa de uma querida amiga. Se chama Betsy e tem 80 anos. Levamos a câmera e apenas um refletor de 1000. Vamos ver o que acontece. Chegando à casa de Betsy descobri que apesar de ser cega, manca, viúva e de morar sozinha, se vira melhor do que muito idoso por aí. Mas a solidão encontra sempre uma ocasião de esquive e a nossa presença ali destampou em Betsy a vontade de falar, falar, falar. Contar causos, cantar músicas, era um espetáculo de si própria feito a um público que ela não vê. Mamma mia, que personagem.

No filme, Maria, a protagonista loser, está apaixonada por Manlio, que a despreza. Quando vai à casa de Betsy entregar-lhe a hóstia e rezar a Ave Maria, Maria cai em prantos e pede conselho à velha senhora. Betsy foi orientada: finja que é realidade, que Maria é uma sua amiga e que está te contando um problema. Tente ajudá-la.

Pronto. Betsy, que não é atriz profissional, mas uma idosa em final de vida que se esquivou da solidão na ocasião, interpretou um personagem estupendo que, na verdade, era si mesma. Foi incrível. Era como se a ação de interpretar a libertasse da responsabilidade de seu próprio caráter. Como se a sua intimidade real legitimada pela câmera do cinema fosse transportada espontaneamente ao campo da ficção. Veio fora um diálogo impressionante e inesperado:

- Maria, você é uma pessoa doce, maravilhosa, sensível. Imagino o quanto está sofrendo por aquele cretino. Manlio! Que nome! Esse Manlio aí vale a pena é? Eu acho que não. Aposto que ele é duro de coração. É isso. Duro de coração! E quando um homem é duro de coração só tem uma saída: dar-lhe uma porrada e bye bye. Enche esse Manlio de porrada e vai embora cantando: Tu non sei l’amore... non sei l’amore... (uma canção italiana antiga muito popular).

Em outra cena, Maria está feliz porque Manlio a convidou para uma viagem que para ela é como se fosse uma lua de mel – fazer uma peregrinação com uma velha que está para morrer. E então Betsy lhe diz com a sua voz aguda de quem tem oitenta anos e usa dentadura:

- Ah Maria, que lindo. Uma viagem com Manlio! Estou contenta por você. Olha, faça a peregrinação direitinho e chegando lá agradeça a Nossa Senhora viu? Lembre-se de rezar e agradecê-la por tudo. Mas olha, vou te contar uma coisa: é claro que em uma peregrinação o sentimento cristão é o que interessa, rezar, agradecer a Nossa Senhora, mas sabe Maria, você não pode se esquecer que o sexo também é muito importante. É... sexo... sobre esse tal de sexo as pessoas nunca falam, você já percebeu? Nós, mulheres somos muito mal informadas sobre sexo você não acha? E as esposas então, coitadas, tenho dó! Na verdade o sexo é uma coisa muito importante Maria... claro, não é que eu saiba muito sobre ele. É uma pena! Sabe, na China existem laboratórios de sexo em que as mulheres vão e recebem informações, explicações, tudo! Aqui o que temos? Nada! Se eu fosse jovem eu pegaria imediatamente um avião para a China e voltaria para cá experiente, praticamente uma professora!

Foi um momento hilariante para todos nós, inesperado, vivo. Betsy foi aplaudida durante minutos, assovios e tudo o mais. Ela sorria, estava contente de ter interpretado, de ter sido reconhecida, nossa musa. E com timidez altiva nos revelou o sonho não realizado de ter sido atriz...

Entretanto, no dia seguinte, a velhinha nos ligou. Por telefone ponderou: Sabe, estava pensando que ontem fui incoerente no meu diálogo com Maria. Maria estava sofrendo porque Manlio não a amava. Mas não é com violência que se resolve essas coisas do coração. Não acho que Maria deve espancá-lo, mas tratá-lo com amor e respeito... Deve cantar assim pra ele: "non mi lasciare, amore, amore... dovunque andare ti cercherò..."( não me deixe, amor, aonde você for te procurarei... - uma música antiga italiana). E mesmo o sexo, penso que seja algo sagrado, ligado ao matrimônio... E por aí foi... Betsy, que não é atriz, mas uma idosa em final de vida que se esquivou da sua solidão naquela ocasião, estava em culpa de ter interpretado a si própria, decodificando improvisadamente a sua ideologia reprimida. Mas nesta contradição do ser, coabitando-se autor e personagem, Betsy optou por não legitimar-se. Pois é, terreno intricado para uma senhora: depois de oitenta anos de vida afrontou os valores culturais da sua sociedade. Não agüentou. A liberdade é um osso duro de roer...

sábado, 11 de outubro de 2008

dança (música)


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dança (texto)

A caixinha de música ficava ali, imóvel sobre a cabeceira da sua cama. Bastava que Margarida a abrisse para pegar alguma jóia nela guardada que Gymnopedie escapava, assim, apressada, sem nem pedir licença. Gymnopedie livre compassava o bailar do casal de madeira que rodava sobre o pequeno salão circular, isolado da realidade por uma estufa de vidro. Aprisionados, dançavam: ela em um vestido longo vermelho, ele em fraque. Quando menina Margarida assistia aos dançarinos esboçando neles o desatino de tornar-se bailarina. O defeito da perna. Não deu.

Margarida cresceu. Acreditava que teria por amante um homem elegante como o boneco de fraque que girava no salão da sua caixinha de música. Mesmo manca de uma perna sentia-se apta a dançar com ele por toda a vida. Gymnopedie lhes faria resvalar, ir, voltar, virar, revolver na enorme sala de vidro. Não deu. Gymnopedie traiçoeira, nefária, maldita.

Margarida envelheceu solteira com a caixinha de música sobre a cabeceira da cama. Foram setenta anos de longas noites em que a abria buscando distração: Gymnopedie fugida a conduzia por lugares quiméricos. Gymnopedie alquimista, utópica, fascinadora.

Naquela noite de menos três graus Margarida não conseguia dormir. Tossia, suava, passava, sozinha. Com a cabeça escorada em medos resolveu abrir a caixinha. Ela usava um vestido vermelho rodante. Um homem elegantemente a tomou nos braços, girando com ela pelo salão de vidro. A claridade cintilava nos detalhes do seu vestido que se agitava alforriado. Gymnopedie emancipada, bendita, serenava. A velha senhora não existia mais.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Pequenina


A menina agitada
Sente-se injustiçada
Quando lhe dão chá
Para se acalmar.
Não é de chá que ela precisa,
Nem maracujá ou homeopatia.
A menina deseja se tocar
Brincar com a mangueirinha do chuveiro.
O banho é o momento sagrado
Para a pequena
Se acalmar
Se conhecer
Se conquistar.


(Imagem: O Galo. Chagall, 1929)

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Parti para a Sicília depois de brindar com Birri


Reencontrei Fernando Birri, cineasta visionário, poeta, alquimista, idealista argentino que dedicou sua vida a fazer com que a América Latina pudesse (re)criar no cinema o seu próprio imaginário. Reencontrei-o depois de oito meses...entreguei-lhe a cópia do curta-metragem "O Sonho de Tilden", de Moara Passoni, em que Birri foi um dos protagonistas e eu dei uma força à produção na Itália. Depois de Veneza, da mediocridade em Veneza 2008, a utopia de Veneza 68, reencontrei Fernando Birri. Um encontro que me encheu de entusiasmo e fortaleceu minha identidade latino-americana. Do festival de Veneza trago as lembranças de Pasolini, Kiarostami, Denis e Agnès Varda, principalmente. "Les Plages d'Agnès" (As praias de Agnès), filme apresentado fora de concurso, explodiu Veneza em cores rebeldes. Filme vital, poético, político. Do Lido de Veneza ao bar Equador em Roma. Da ousadia de Agnès Varda à doçura e sabedoria de Birri. Dois idosos-juvenis, dois artistas políticos, a francesa do cabelo bicolor e o argentino da barba longa branca. Ela, mãe da nouvelle vague francesa, ele, pai do cinema novo latino-americano. De um salto à outro, encontrei algumas respostas, transfigurei em mim sensibilidades...
Birri me presenteou com seu último livro: "O Alquimista Democrático - por um novo, novo, novo cinema latino-americano". 35 anos de escritos teóricos e poéticos... Eu e Birri no bar Equador em Roma. A América do Sul em Roma. Não existe pecado do lado de baixo do Equador...Conversamos, dividimos, brindamos.
E agora estou partindo para a Sicília. Farei assistência de direção no filme do meu amigo Pasquale. Agnès e Birri: injeção de ânimo na veia. É a energia artística, intelectual, transgressiva, política e poética que o cinema tanto precisa.

PS - EM RAZÃO DAS FILMAGENS, VOLTAREI A POSTAR NO BLOG NO DIA 7 DE OUTUBRO
PS 2 - PARA LER A COBERTURA QUE REALIZEI EM VENEZA PARA A CINEQUANON, COM TEXTOS SOBRE O EVENTO, FILMES DE PASOLINI, KIAROSTAMI, AGNÈS VARDA, CLAIRE DENIS, ETC, E O BALANçO FINAL DO FESTIVAL CLIQUE AQUI: http://www.cinequanon.art.br/ E SEGUIR NO LINK FESTIVAIS E MOSTRAS

(Na foto, Fernando Birri no curta-metragem "O Sonho de Tilden", de Moara Passoni, exibido na ùltima edição do "é tudo verdade")


quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Parti para o Festival de Veneza

Estou partindo para a Mostra Internacional de Arte Cinematográfica de Veneza com alguns amigos do Centro Sperimentale di Cinematografia. Parto munida de uma credencial “Industry Professional” que dentre alguns privilégios, tais como acesso ao Industry Office e descontos em restaurantes, proporciona acesso prioritário a diversas exibições e eventos do festival...

... Será um esquema alternativo de hospedagem: ficaremos acampados em Lido mesmo, em um camping não muito longe do complexo de salas da Biennale d’Arte...

...O que estou indo buscar em Veneza em 2008? Um diálogo com Veneza-68, que foi um marco significativo na história do cinema italiano e é um tema de estudo que particularmente me atrai...

PARA LER O ARTIGO NA ÍNTEGRA ACESSE O SITE: http://www.cinequanon.art.br/.
FAREI UMA COBERTURA DO FESTIVAL PARA A CINEQUANON O QUE SIGNIFICA QUE NÃO ATUALIZAREI O BLOG NESTES DIAS.
PARA ACOMPANHAR A COBERTURA CLIQUE: http://www.cinequanon.art.br/
Um abraço!

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Guimarães Rosa tinha razão


"Vaca no pasto é cachorro mastigando chiclete". Anahí Borges. Julho, 2008.

Vínhamos pelo Caminho de Santiago, deixando para trás o pequeno vilarejo rural, todo feito de pedras. A terra batida respondia ao excesso de sol levantando uma poeira densa feito farinha de rosca. Caminhávamos silenciosos quando encontramos a dita cuja. Uma senhora vaca, assim preta, assim grande, que espiava curiosa por entre as fendas do curral os peregrinos que passavam por ali. Os bezerros já estavam grandes o suficiente para estarem no canto por conta própria, a vaca queria mesmo é se socializar, mexer com aqueles que passavam ali a sua frente. Pecado que caminhavam apressados, não lhe davam atenção... os peregrinos do século vinte e um já são geneticamente motorizados. Nós paramos, e ali me lembrei de Guimarães Rosa.

Enquanto eu acariciava a cabeça da vaca percebi que ela parecia um cachorro... os cachorros que são assim, mexem a cabeça de um lado para o outro, para a frente, para trás, como se dissessem “Mais para cá”, “Agora mais para aqui”, “Isso, aí!”, orientando o trajeto das nossas mãos no gesto de afago e estampando na cara um prazer incontrolável. A vaca começou a me lamber: uma lambida de cachorro, alegre, afetuosa, histérica. Uma língua áspera que na ponta faz uma voltinha para fisgar o capim! Upa! A língua da vaca laçou o meu braço! Olé! E neste instante de comunhão ela me olhou, e dos seus olhos escorriam lágrimas em fluxo contínuo. “Felipe! Olha só aqui! A vaca está chorando!”. E Felipe, abandonando os bezerros que também estavam muito disponíveis para amizade, veio olhar a vaca que chorava. “Putz! É mesmo!”. E a vaca chorava, chorava, chorava...

Em “Sagarana”, de Guimarães Rosa, no conto “O Burrinho Pedrês”, um dos vaqueiros conta a história de um fazendeiro muito ruim chamado Madureira. Quando ele morreu, na noite do velório, os bovinos ficaram a noite inteira chamando no curral:

Os bois: “Ô Madureira, Madureira!”

As vacas respondiam: “Foi pros inferno, foi pros inferno!”

E assim repetiam durante toda a noite do velório. “Ô Madureira, Madureira!”, “Foi pros inferno, foi pros inferno!”

A vaca que conheci no Caminho de Santiago também se comunicava. Pela fenda do curral chamava amizades. E no íntimo de sua melancolia e abandono típicos da espécie, o ser se sentiu cachorro afagado, domesticado. Ser habitado. Chorou de emoção. E eu também chorei...

domingo, 10 de agosto de 2008

AVISO 2

CAROS,
DESCULPEM-ME, MAS ESTAREI SEM ACESSO à INTERNET ATé O DIA 24 DE AGOSTO...
UM ABRAçO!

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Samba da Compostela

"Entre as flores de Cacabelos", Anahí Borges, julho de 2008.

*Compostela: é um certificado no qual consta que tu peregrinaste à Santiago por motivos de piedade e devoção. É outorgado na Oficina do Peregrino se tu reúnes as condições para recebê-la. Será uma lembrança da tua peregrinação e do compromisso adquirido com Deus de ajudar a construir seu Reino.

(Definição presente no panfleto de informações ao peregrino distribuído pela Oficina do Peregrino junto à Catedral de Santiago de Compostela)

Tantas são as vivências, reflexões e questionamentos do indivíduo que faz o Caminho de Santiago. Possivelmente em outro texto desenvolverei algumas questões plurais e contraditórias que encontrei no percurso. Por ora, resta o samba que fiz para ironizar a mercantilização explícita deste caminho secular. Lojas de peregrinos que vendem o bastão do peregrino, o chapéu do peregrino, a camiseta do peregrino; restaurantes oferecendo o menu do peregrino. Os albergues lotados, as trilhas lotadas. A galera dos 100 km (para pegar a “Compostela” é obrigatório percorrer o mínimo de 100 km). Enfim, eu escrevi esta letra enquanto a revolta batia no peito feito tambor de escola de samba, e cantava-a para recuperar o alto-astral ameaçado. Pois é... É o ecoturismo mascarado aí gente! Vamos lá, é a galera Compostelense na avenida!

Samba da Compostela*

Compostela
Eu acordo, caminho, durmo pensando nela
O sol nem raiou e eu já estou na janela
Espiando as pessoas se vêm caminhando
Seguindo os rabiscos da flecha amarela

Compostela
Eu levanto apressado e já saio marchando
Quero ser o primeiro do bando andando
Vou de braços abertos pra ti
Compostela

Compostela
Faço dez, faço vinte ou trinta quilômetros
Paro só quando sinto o ronco no estômago
Paro para comer o menu do peregrino

São dez contos
Presuntinho, salame, tortinha e batata
De segundo vem um filezinho na chapa
Tem ainda o vinho e a sobremesa

Compostela
Eu mastigo, eu engulo só pensando nela
Pago logo la cuenta e já saio fudido
Quero recuperar este tempo perdido

Vou correndo
Com o meu mochilão, oito quilos nas costas
Quero ultrapassar a multidão ansiosa
Que veio pro Caminho na última etapa

Só pra ter
O tal certificado de participação
Ter você, Compostela, de Santiagão
Isto aqui é um negócio: peregrinação

E ainda
Se já não bastasse todo este esforço
Eu caminho, eu rezo, eu rogo, eu torço
Encontrar uma vaga para descansar

No albergue
São três contos, caminha e banho quentinho
Dormir cedo de noite e sonhar com anjinho
Para depois acordar só pra ti
Compostela

Compostela
Eu caminho, caminho, só pensando nela
Toda a cara suada
E o pé já com bolha
Minha pele queimada
Este sol tá lascado

E se chove
Isto aqui vira um caos
Água, vento e lama
Mas tu sabes fiel que é fiel não reclama
Vou de braços abertos pra ti
Compostela

quinta-feira, 17 de julho de 2008

AVISO

CAROS,
APROVEITANDO QUE AS REFORMAS TRABALHISTAS AINDA NÃO ENGOLIRAM DE VEZ O NOSSO DIREITO NATURAL E MORAL AO DESCANSO, INFORMO QUE ESTOU ENTRANDO EM FÉRIAS. PARTO PARA A VIA LÁCTEA, DE BUÑUEL, E ESTAREI SEM ACESSO À INTERNET... DE QUALQUER FORMA, VOLTAREI A POSTAR NO BLOG NO DIA 4 DE AGOSTO.
UM ABRAÇO!

terça-feira, 15 de julho de 2008

Projeção interrompida

O peito acossado, o coração debandado: é a tirania do belo. Já não posso mais. Não suporto mais amar ininterruptamente a beleza de Rita Hayworth.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

De Glauber Rocha


"Uma obra de arte revolucionária, um filme do Cinema Novo, deveria não só agir de modo imediatamente político, mas também promover a reflexão filosófica criando uma estética do eterno movimento humano em direção à unidade cósmica"