sábado, 2 de novembro de 2013

Asas de Pescador

"Spring", René Margritte

Seu Antonio é um cabra da peste. Homem mais teimoso que ele não tem não senhor. Lavrador aposentado da Piritiba, interior da Bahia, acabou por aceitar o convite da filha somente depois que a mulher faleceu. Vendeu a terra, a casa pequena, e se mudou para junto dela e do neto, em São Sebastião, cidade do litoral paulista. Sofia é separada do marido e trabalha como atendente em um posto de saúde no município de Boiçucanga. É a filha caçula, a mais próxima de Antonio; os outros, todos homens, vivem espalhados pelo mundo.
         
Seu Antonio acorda cedo, cinco e meia da manhã. Não perde o hábito de ouvir rádio. Logo de manhã reza em jejum o Ofício de Nossa Senhora, reza forte e comprida que assombra o demo, espanta guerra, inimigo e doença, e chama paz na família. Depois toma seu cafezinho preto, pita um cigarro de palha sentado na porta da cozinha, olhando o quintal, espiando o céu. Depois bebe meia xícara de leite com beju e come com gosto um pedaço de cuscuz com manteiga de garrafa. Arremata com outro gole de café, preto, pretinho.
«Pronto, to comido», e respira, aliviado.

Então se senta num canto da sala e liga o rádio para ouvir seus programas preferidos: “notícias do Brasil e do Mundo”, na Rádio Panamine, 650 quilohertz; depois escuta os casos de acontecimento que o povo escreve para a rádio Tupinambá, no Programa “Estou escutando”. Fica sempre impressionado com uma ou outra tristeza, um caso de abandono, outro de assombração, de morte anunciada ou de morte matada ou morrida, e depois muda para a Rádio Bem Fica, e escuta as modas de viola.

Lá pelas oito horas coloca seu chapéu e sai a pé andando um tanto, cumprimenta Fulano, Cicrano ou Beltrano que encontra pelo caminho. A cada um fez um gesto com o chapéu, gesto de respeito, educação e cortesia. E segue seu tanto. Quando chega lá na arribada do Mané, corta o caminho por uma picada e entra para a curva da viúva. Passa pela estrada do maquininha, pela padaria da ponte, chega na praça. Na frente da quitanda de Dona Ana, Seu Praxedes lava a calçada: «Bom dia, Seu Antonio. Como vai o povo lá?». «Na paz de Deus!» «Ah, bom, nos conformes. Hoje chove. Acordei com o pio da coruja: é chuva, chuva, chuva ». «Tomara, pra espantar as moscaiada», conclui.

 Seu Antonio segue em frente, entra pelo lado do bar do Toninho e ruma para a praia. Logo avista os barcos dos pescadores no mar, dirigindo-se de volta. As popas de diversas cores: azul, vermelho, amarelo. No céu, as gaivotas acompanham os barcos, parecendo um bando de batedores indicando o caminho. Os peixes são descarregados em carretinhas para serem transportados para o mercado.  Algumas donas-de-casa, cujas mãos enrugadas são o testemunho dos anos dedicados à família, aguardam à beira-mar e se aproximam para escolher: «Quero esta garoupa». «Seu Zé faz a bicuda por 15?». «Oh pescada, boa».
Negociam as mulheres e os pescadores na beira da praia sob olhos irônicos de Seu Antonio. O velho não dá nada por esses peixes, ainda se fosse peixe de rio. Bagre, Mandi. Ele gosta mesmo é de carne, carne de sol, dita na cidade como carne do sertão, vermelhinha, salgada. Come com farinha. Seu pai já dizia: Deus amarrou a vaca no pé de mandioca, é de carne e farinha que o homem precisa.

Acabada a negociação, as mulheres vão embora com seus peixes, os pescadores com o seu tanto para vender no mercado. Seu Antonio fica só naquele pedaço de mundo que Deus fez para ele pensar. E fica olhando o céu azul. Depois o mar, admirando as ondas que fazem aquele rendado branco de espuma. Por fim as gaivotas, que vêm e vão, gritando um som que parece mais gargalhada. As gaivotas são aves debochadas, riem o tempo todo da cara da gente.

Quando menino, na Piritiba, Seu Antonio via os urubus e ia contando, como suas irmãs: rei, capitão, soldado, ladrão, moça bonita do meu coração, casa, não casa, casa, não casa, casa. Olhava também os anus. E contava. Agora que mora no litoral, nunca mais viu anu. Anu não é bicho de cidade. Então passou a gostar das gaivotas. O coração às vezes faz isso com a gente, substitui os afetos por razão de sobrevivência. E olhando as gaivotas, esse sertanejo tem certeza de que elas conversam: “Fulano, já vai? Não, não vou. Vai quando? Agorinha, agorinha. Mas quando? Espere um pouco”. E riem. Debochadas. Mas não tem sorriso que cole uma fratura doída. Seu Antonio tem mesmo é saudade do filho do meio. Santino.

“Pai, mando um postal da Sicília para o senhor ver como é aqui. Espero que goste”. “Está vendo esse porto? É Messina. O estreito de Messina que liga a ilha ao continente. Daqui de casa escutamos a sirene das balsas”. “A Itália parece uma bota, dá pra ver o taco?”. Santino trabalha num restaurante em Messina, sul da Itália. Quando trabalhava como garçom no Rio de Janeiro conheceu uma siciliana. Casaram-se. Nunca mais voltou ao Brasil. Nem mesmo pro velório da mãe. “É muito trabalho pai, não posso deixar a Stefania sozinha. Não tenho tempo nem de ir ao médico”. Mas sempre que pode manda presente. Chega carta, chega fotografia. “Pai, essa foto é do batizado de Gloria, que nasceu com 3 quilos. Dos meninos, o mais alto é Pasquale e o gordinho é Genaro. O senhor que vir para a Sicília? Assim... de férias. Eu pago a passagem pro senhor... passava aqui uns dias, descansava, andava na beira da praia, ia ver que o mar não é igual em todo lugar. O daqui é azul, azul, azul já o de Salvador é verde”.

Seu Antonio, Seu Antonio. Oh homem teimoso, meu Deus. Não tem jeito, o medo do avião grudou forte o homem na cadeira de pau e a filha, retirando os pratos da mesa após o jantar, faz uma última tentativa: «Quem dera eu ir para a Itália, quem dera». E o velho rebate: «E se o avião cai? Se eu passar mal, morrer lá nos estrangeiro? Vão rezar umas rezas que eu não entendo, naquela língua deles. A minha alma vai penar porque a reza não vai ter serventia...». «A reza é uma só pai, o japonês não reza igual a gente só que lá na língua dele? Não tem o mesmo valor?». «Eu não conheço outra língua não, só a minha mesma. Se eu morrer quero uma reza no Pai Nosso, na Virgem Maria, uma boa missa, na nossa boa língua. Não vou não. Não carece, os meninos já conheço de fotografia, não carece conferir...». «Pai, lá é uma ilha». «Pior ainda, aí é que eu não vou mesmo».

Não houve jeito. Seu Antonio enterrou o assunto, nem triscou mais nele.  E ainda ficou bravo porque a filha não respeita o seu jeito de ser. Todo mundo sabe que Seu Antonio é homem pacato, esposado com o silêncio, nunca saíra dali dos arredores da Piritiba não, somente para vir para São Sebastião quando a mulher morreu, mais nada. Não conhece lugar nenhum, e nem faz questão. Não é cigano.

Até que um dia, sentado na praia com o amigo Praxedes, Seu Antonio olha o mundo e pita o cigarrinho de palha. «Onde é que essas bichinhas põem os ovos? Deve ser bem longe, num lugar de pedra, num oco, pra ninguém pegar... » Seu Praxedes observando a admiração de Seu Antonio pelas gaivotas, assiste como ele acompanha o vôo delas, às vezes mexendo com a cabeça, inclinando, o vôo inclinado, conforme. «Sabe, Antonio, diz que gaivota é pescador que já morreu. Não acredito não ». «Como assim?»  «É pois. Isso é do tempo do meu pai, parece que é coisa lá da Itália, duma ilha chamada Sicília. Dizem que quando os pescadores morrem, eles não se afastam do mar. O espírito deles continua na forma de gaivotas e fica para sempre perto dos barcos. É por isso que elas pescam, ficam no mar, cada qual segue o seu barco, coisa de pescador. Parece que indicam caminhos, cardumes, perigos. Quando não há gaivotas no mar é porque pode dar tempestade. Maus agouros. Eu não acreditei patavina. Não acredito em espírito». «Ai é? Pescador que já morreu? Pode de ser mesmo... É pescador lá da Sicília?» «Sei não. Isso falava lá na Itália. Meu pai que me contava. Diz que. Não acredito não».

Mas Seu Antonio que é homem forte e cristão, em histórias do além e causos ligados à tradição confia até de olhos fechados. Desde aquele dia começou a observar com silêncio religioso as gaivotas à beira-mar. «Então elas se chamam José, João, Pedro, Lucas e Maria?»... conclui, enquanto acompanha com o olhar algumas que plainam sobre os barcos logo de manhã cedinho, protegendo cada pescador em seu  retorno à terra firme. 

Todo dia o sertanejo acorda cedo, reza em jejum o Ofício de Nossa Senhora, toma seu cafezinho preto, pita um cigarro de palha sentado à porta da cozinha. Depois bebe meia xícara de leite com beju, e come com gosto um pedaço de cuscuz com manteiga de garrafa. Em seguida ouve no rádio as “notícias do Brasil e do Mundo”, na Rádio Panamine, 650 quilohertz; os casos de acontecimento que o povo escreve para a rádio Tupinambá, e as modas de viola na Rádio Bem Fica. Depois põe o chapéu e caminha caminha caminha... e vai sentar lá na beira da praia para ver a chegada das embarcações.

Uma gaivota está em busca de amizade e pousa ao lado de Seu Antonio, bem na ponta do banco de madeira. Lá adiante as donas-de-casa estão negociando os peixes nas carretinhas dos pescadores, e no outro lado do mundo o sol já foi dormir. Seu Antonio observa as ondas que fazem rendas no mar e observa igualmente a gaivota ao lado que agora é sua amiga. «Teu nome de agora em diante será Giovanna». Ecco perché: desde que ouviu a história de Seu Praxedes algo de novo aconteceu no nosso sertanejo. O ser se sentiu tocado, afagado, ser habitado. Se espírito ou não, pouco importa, as gaivotas também são gente, e lhe trazem saudades do filho Santino. Elas lhe trazem também aquela vontade danada de conhecer a Sicília de perto. «Seria bom mesmo ir lá pra Itália e pedir a benção pro Papa»...

Mas não tem jeito não. Seu Antonio é cabra macho. É homem teimoso, pacato. Não conhece lugar nenhum, e nem faz questão. «Não sou cigano mesmo», insiste. E então, acabada a negociação à beira da praia, as mulheres vão embora com seus peixes e os pescadores com o seu tanto para vender no mercado. Não são ainda nem nove horas da manhã. Seu Antonio fica só, naquele pedaço de mundo que Deus fez para ele ajuizar. Só não, fica ali com as gaivotas. Olha o céu azul. «E depois, vai que este avião cai de verdade? Se eu morrer quero uma reza no Pai Nosso, na Virgem Maria, uma boa missa, na nossa boa língua. Pra Itália? Fazer o que lá? Não vou não. Não carece... » E assim o  ilustre sertanejo se convence mais uma vez.



terça-feira, 15 de outubro de 2013

Espelho d'água


Ao sol é atribuída a luz vital
Sob a égide da ordem e da sobrevivência dos corpos.
Até que o eclipse o transfigura em sombra semi ativa, impedindo-o de gerar vida.
Ilumina esrcarsamente aquilo que o cinge.
Não é a vida que é escarsa, diz o Sol.
Quase insípido, ainda luzente.
O pássaro caindo do ninho,
se estricha, sumpica, se arrambica.
Agarra-se ao galho cedido, pendente,
para sobreviver.
São nas pequenas coisas que a sobrevivência ainda é mistério.
A vida e a morte se coabitam e se auto consomem.

* ilustração: "Madonna" de Munch

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Chiaro di Luna (Luar)

La luna scandalosa. Scandaloso silenzio.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013