sábado, 15 de outubro de 2016

Vida estrangeira

Na vida só tinha o nome de batismo, mais nada. Maria de Lourdes, batizada em Glória e sob a custódia da Santíssima Trindade. Mas a menina não tinha talento para o cristianismo. Gostava de fazer maldades, tinha o hábito de maltratar animais. Assim, depenou um pintinho recém-nascido, cortou com uma tesoura a barriga do gato da vizinha, estourou a cabeça de um cachorro de rua com um paralelepípedo e arremessava diariamente o jabuti da avó contra a parede do jardim, para ver os caquinhos do casco se multiplicarem. Maria de Lourdes cresceu, a avó morreu de morte morrida e a mãe de morte matada: envenenada pela filha que, em seguida, deu-se um tiro no meio da cara. Seu nome continuou uma incógnita e um contrassenso. Só restou sua lápide: Maria de Lourdes, sem assinatura, sem nada, na metade do caminho.   

*Imagem: Vampire, Edvar Munch, 1893.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

O pianista


Quando ele encontrou seu pai biológico foi um verdadeiro choque: dono de uma antiga relojoaria no Ipiranga, é um homem robusto, já nos seus setenta anos, vulgar com seu charuto. De origem russa, vive sobre uma cadeira de rodas após o acidente de carro. Não tinham muito o que dizer um ao outro pois sequer conviveram nos seus 30 anos de vida. Mauro soube que era adotado no dia do funeral de seu pai adotivo. Ele era japonês e Mauro nunca soube perceber que semelhanças não haviam entre eles, mas foi levando a vida tocando piano, e Bach, Beethoven, Satie e Mozzart o levavam a outras percepções. A mãe, idosa, resolveu lhe contar sua origem. Mauro, até hoje renega seus irmãos e mãe biológica, que o perseguiram pela vida inteira. É sua opção, para ele tudo isso é mentira, blasfêmia, aquela verdade que tem um preço alto para ser real. Pão ou pães é questão de opiniães, diria Riobaldo, de “O Grande Sertão: Veredas”.

*Imagem: Circle in a Circle, Kandinsky, 1923.