quinta-feira, 28 de julho de 2016

Quando do amor


Ela foi pega pela desmarginação no meio da rua. Ao seu redor, objetos e pessoas perdiam as margens e tudo se fundia numa matéria crua. Os sons ficavam mais nítidos e dava a impressão de ver o mundo correr em câmera lenta. A desmarginação, como ela denomina o fenômeno, vem-lhe quando menos espera. Em geral, quando está obcecada com o amor não correspondido por Júlio. Toma a forma de desespero engarrafado que ela engole em conta gotas. Uma árvore que tomba seca, retorcida. A borboleta que é arrastada pelo vento. O pássaro que se descobre sem asas no meio do voo. A desmarginação a tomou pelo braço e a conduziu por lugares quiméricos. 
Quando a encontrei estava nua, no ângulo do muro pichado. Havia tirado a roupa pelo calor excessivo e seu olhar era de bronze. A chuva azul de uma manhã de primavera clareava as formas ignotas de seu corpo frágil que se fundiam à matéria bruta do viver. Júlio não a ama e ela padece. Invisível, insolúvel, cindida. A sua dor peregrina busca alguma forma que torne plausível a própria existência.   

*Imagem: Crying Woman, Pablo Picasso, 1937.

domingo, 17 de julho de 2016

O homem de sessenta e cinco anos


Ele trabalhava na feira com o pai. A barraca era de queijos e embutidos. Um dia, enquanto embalava o requeijão no jornal, ele leu a manchete: Fuvest - curso de cinema. Não teve dúvidas: separou a matéria e prestou o vestibular. Passou e veio para São Paulo. Só tinha dezoito anos. Na mala trouxe a pequena vida que levava em Fernandópolis e com ela permaneceu. Na cidade grande, nunca fez amigos, tinha dificuldades com a vista para o concreto, perdeu um amor para o jogo e começou a beber, até ser encontrado caído na Catedral da Sé. Depois de um tempo, passou no concurso público e se dedicou à burocracia estatal até se aposentar. Durante todos esses anos, a viola caipira era quem lhe fazia companhia e cada vez que a tocava chorava. Era saudade do pai, que tanto lhe havia batido com fio de ferro. Era saudade da mãe, que se divorciou do pai para se casar com Jesus Cristo. Era saudade do córrego que marcou a sua infância e nunca mais o visitou. Desde quando partiu jamais retornou à cidade natal. Ex-futuro cineasta, ex-feirante, ex-menino. Ele era um senhor solitário que sentia culpa pela própria existência. Achava que era feliz e por isso chorava tocando viola. Ligou o gás e morreu junto a ela no último sábado. Chovia.

*Imagem: Hand II, Egon Schiele, 1912.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Menino

Ele era ainda um pintinho quando o pai o bicou até quase a morte. Vó foi quem botou os intestinos da criatura pra dentro e costurou tudo com linha e agulha. Ele sobreviveu. Foi crescendo até virar frangote. Menino. Este era seu nome. Vivia solto no quintal, longe do pai que reinava austero no galinheiro. Menino, com seu canto desafinado e comprido, ciscava de lá pra cá, comia na mão das pessoas e recebia cafuné na cabeça: era dócil e domesticado. Talvez nutrisse uma profunda gratidão pela sobrevivência que lhe fora conferida graças à vó.
Com o tempo, vó foi ficando doente e morreu. Mãe, triste até a alma, não suportava mais o canto do Menino pois lhe fazia recordar vó. Decidiu se desfazer dele. O carroceiro que passava semanalmente na casa para retirar lixo reciclável manifestou interesse em adota-lo, dizendo que teria companhia em suas andanças.
O dia da despedida foi na semana seguinte: Menino, no colo de mãe, era acariciado pelas mãos dos filhos que, abatidos, lastimavam a sua partida. De repente, Menino derramou uma lágrima que escorreu pelo braço de mãe. Ela deu floral pra ele se acalmar. O carroceiro o levou. Os filhos choraram de pesar e mãe, firme, estava convencida de ter feito o justo.
Quando o carroceiro passou na outra semana mãe perguntou sobre Menino e o homem disse que a galinhada foi boa. Mãe ficou perplexa: talvez tenha errado em sua decisão, mas era certo que não podia conviver com o canto dele. No mais, como poderia imaginar o seu destino? Coração do outro é terra estrangeira. Mãe entregou o lixo reciclável para o carroceiro e fechou o portão. Nunca contaria aos filhos sobre Menino. Menino desajeitado, canto descompassado e comprido que fazia recordar vó. Menino doce, Menino triste, Menino morto. Ôh esse Menino.

*imagem: O Galo, Marc Chagall.