"Spring", René Margritte |
Seu Antonio é um cabra da peste. Homem mais teimoso que ele não tem não senhor. Lavrador aposentado da Piritiba, interior da Bahia, acabou por aceitar o convite da filha somente depois que a mulher faleceu. Vendeu a terra, a casa pequena, e se mudou para junto dela e do neto, em São Sebastião, cidade do litoral paulista. Sofia é separada do marido e trabalha como atendente em um posto de saúde no município de Boiçucanga. É a filha caçula, a mais próxima de Antonio; os outros, todos homens, vivem espalhados pelo mundo.
Seu Antonio acorda cedo, cinco e
meia da manhã. Não perde o hábito de ouvir rádio. Logo de manhã reza em jejum o
Ofício de Nossa Senhora, reza forte e comprida que assombra o demo, espanta
guerra, inimigo e doença, e chama paz na família. Depois toma seu cafezinho
preto, pita um cigarro de palha sentado na porta da cozinha, olhando o quintal,
espiando o céu. Depois bebe meia xícara de leite com beju e come com gosto um
pedaço de cuscuz com manteiga de garrafa. Arremata com outro gole de café,
preto, pretinho.
«Pronto, to
comido», e respira, aliviado.
Então se senta num canto da sala e liga o rádio para ouvir seus programas
preferidos: “notícias do Brasil e do Mundo”, na Rádio Panamine, 650 quilohertz;
depois escuta os casos de acontecimento que o povo escreve para a rádio
Tupinambá, no Programa “Estou escutando”. Fica sempre impressionado com uma ou
outra tristeza, um caso de abandono, outro de assombração, de morte anunciada
ou de morte matada ou morrida, e depois muda para a Rádio Bem Fica, e escuta as
modas de viola.
Lá pelas oito horas coloca seu chapéu e sai a pé andando um tanto,
cumprimenta Fulano, Cicrano ou Beltrano que encontra pelo caminho. A cada um fez
um gesto com o chapéu, gesto de respeito, educação e cortesia. E segue seu
tanto. Quando chega lá na arribada do Mané, corta o caminho por uma picada e
entra para a curva da viúva. Passa pela estrada do maquininha, pela padaria da
ponte, chega na praça. Na frente da quitanda de Dona Ana, Seu Praxedes lava a
calçada: «Bom dia, Seu Antonio. Como vai o povo lá?». «Na paz de Deus!» «Ah,
bom, nos conformes. Hoje chove. Acordei com o pio da coruja: é chuva, chuva,
chuva ». «Tomara, pra espantar as moscaiada», conclui.
Seu Antonio segue em frente, entra
pelo lado do bar do Toninho e ruma para a praia. Logo avista os barcos dos
pescadores no mar, dirigindo-se de volta. As popas de diversas cores: azul,
vermelho, amarelo. No céu, as gaivotas acompanham os barcos, parecendo um bando
de batedores indicando o caminho. Os peixes são descarregados em carretinhas
para serem transportados para o mercado.
Algumas donas-de-casa, cujas mãos enrugadas são o testemunho dos anos
dedicados à família, aguardam à beira-mar e se aproximam para escolher: «Quero
esta garoupa». «Seu Zé faz a bicuda por 15?». «Oh pescada, boa».
Negociam as mulheres e os pescadores na beira da praia sob olhos irônicos
de Seu Antonio. O velho não dá nada por esses peixes, ainda se fosse peixe de rio.
Bagre, Mandi. Ele gosta mesmo é de carne, carne de sol, dita na cidade como
carne do sertão, vermelhinha, salgada. Come com farinha. Seu pai já dizia: Deus
amarrou a vaca no pé de mandioca, é de carne e farinha que o homem precisa.
Acabada a negociação, as mulheres vão embora com seus peixes, os
pescadores com o seu tanto para vender no mercado. Seu Antonio fica só naquele
pedaço de mundo que Deus fez para ele pensar. E fica olhando o céu azul. Depois
o mar, admirando as ondas que fazem aquele rendado branco de espuma. Por fim as
gaivotas, que vêm e vão, gritando um som que parece mais gargalhada. As
gaivotas são aves debochadas, riem o tempo todo da cara da gente.
Quando menino, na Piritiba, Seu Antonio via os urubus e ia contando, como
suas irmãs: rei, capitão, soldado, ladrão, moça bonita do meu coração, casa,
não casa, casa, não casa, casa. Olhava também os anus. E contava. Agora que
mora no litoral, nunca mais viu anu. Anu não é bicho de cidade. Então passou a
gostar das gaivotas. O coração às vezes faz isso com a gente, substitui os
afetos por razão de sobrevivência. E olhando as gaivotas, esse sertanejo tem
certeza de que elas conversam: “Fulano, já vai? Não, não vou. Vai quando?
Agorinha, agorinha. Mas quando? Espere um pouco”. E riem. Debochadas. Mas não
tem sorriso que cole uma fratura doída. Seu Antonio tem mesmo é saudade do
filho do meio. Santino.
“Pai, mando um postal da Sicília para o senhor ver como é aqui. Espero
que goste”. “Está vendo esse porto? É Messina. O estreito de Messina que liga a
ilha ao continente. Daqui de casa escutamos a sirene das balsas”. “A Itália
parece uma bota, dá pra ver o taco?”. Santino trabalha num restaurante em Messina,
sul da Itália. Quando trabalhava como garçom no Rio de Janeiro conheceu uma
siciliana. Casaram-se. Nunca mais voltou ao Brasil. Nem mesmo pro velório da
mãe. “É muito trabalho pai, não posso deixar a Stefania sozinha. Não tenho
tempo nem de ir ao médico”. Mas sempre que pode manda presente. Chega carta,
chega fotografia. “Pai, essa foto é do batizado de Gloria, que nasceu com 3 quilos.
Dos meninos, o mais alto é Pasquale e o gordinho é Genaro. O senhor que vir
para a Sicília? Assim... de férias. Eu pago a passagem pro senhor... passava aqui
uns dias, descansava, andava na beira da praia, ia ver que o mar não é igual em
todo lugar. O daqui é azul, azul, azul já o de Salvador é verde”.
Seu Antonio, Seu Antonio. Oh homem teimoso, meu Deus. Não tem jeito, o
medo do avião grudou forte o homem na cadeira de pau e a filha, retirando os
pratos da mesa após o jantar, faz uma última tentativa: «Quem dera eu ir para a
Itália, quem dera». E o velho rebate: «E se o avião cai? Se eu passar mal,
morrer lá nos estrangeiro? Vão rezar umas rezas que eu não entendo, naquela
língua deles. A minha alma vai penar porque a reza não vai ter serventia...». «A
reza é uma só pai, o japonês não reza igual a gente só que lá na língua dele?
Não tem o mesmo valor?». «Eu não conheço outra língua não, só a minha mesma. Se
eu morrer quero uma reza no Pai Nosso, na Virgem Maria, uma boa missa, na nossa
boa língua. Não vou não. Não carece, os meninos já conheço de fotografia, não
carece conferir...». «Pai, lá é uma ilha». «Pior ainda, aí é que eu não vou
mesmo».
Não houve jeito. Seu Antonio enterrou o assunto, nem triscou mais nele. E ainda ficou bravo porque a filha não
respeita o seu jeito de ser. Todo mundo sabe que Seu Antonio é homem pacato,
esposado com o silêncio, nunca saíra dali dos arredores da Piritiba não,
somente para vir para São Sebastião quando a mulher morreu, mais nada. Não conhece
lugar nenhum, e nem faz questão. Não é cigano.
Até que um dia, sentado na praia com o amigo Praxedes, Seu Antonio olha o
mundo e pita o cigarrinho de palha. «Onde é que essas bichinhas põem os ovos?
Deve ser bem longe, num lugar de pedra, num oco, pra ninguém pegar... » Seu Praxedes
observando a admiração de Seu Antonio pelas gaivotas, assiste como ele
acompanha o vôo delas, às vezes mexendo com a cabeça, inclinando, o vôo
inclinado, conforme. «Sabe, Antonio, diz que gaivota é pescador que já morreu.
Não acredito não ». «Como assim?» «É
pois. Isso é do tempo do meu pai, parece que é coisa lá da Itália, duma ilha chamada
Sicília. Dizem que quando os pescadores morrem, eles não se afastam do mar. O
espírito deles continua na forma de gaivotas e fica para sempre perto dos barcos.
É por isso que elas pescam, ficam no mar, cada qual segue o seu barco, coisa de
pescador. Parece que indicam caminhos, cardumes, perigos. Quando não há
gaivotas no mar é porque pode dar tempestade. Maus agouros. Eu não acreditei
patavina. Não acredito em espírito». «Ai é? Pescador que já morreu? Pode de ser
mesmo... É pescador lá da Sicília?» «Sei não. Isso falava lá na Itália. Meu pai
que me contava. Diz que. Não acredito não».
Mas Seu Antonio que é homem forte e cristão, em histórias do além e
causos ligados à tradição confia até de olhos fechados. Desde aquele dia começou
a observar com silêncio religioso as gaivotas à beira-mar. «Então elas se
chamam José, João, Pedro, Lucas e Maria?»... conclui, enquanto acompanha com o
olhar algumas que plainam sobre os barcos logo de manhã cedinho, protegendo
cada pescador em seu retorno à terra
firme.
Todo dia o sertanejo acorda cedo, reza em jejum o Ofício de Nossa
Senhora, toma seu cafezinho preto, pita um cigarro de palha sentado à porta da
cozinha. Depois bebe meia xícara de leite com beju, e come com gosto um pedaço
de cuscuz com manteiga de garrafa. Em seguida ouve no rádio as “notícias do
Brasil e do Mundo”, na Rádio Panamine, 650 quilohertz; os casos de
acontecimento que o povo escreve para a rádio Tupinambá, e as modas de viola na
Rádio Bem Fica. Depois põe o chapéu e caminha caminha caminha... e vai sentar lá
na beira da praia para ver a chegada das embarcações.
Uma gaivota está em busca de amizade e pousa ao lado de Seu Antonio, bem
na ponta do banco de madeira. Lá adiante as donas-de-casa estão negociando os
peixes nas carretinhas dos pescadores, e no outro lado do mundo o sol já foi
dormir. Seu Antonio observa as ondas que fazem rendas no mar e observa
igualmente a gaivota ao lado que agora é sua amiga. «Teu nome de agora em
diante será Giovanna». Ecco perché: desde que ouviu a história de Seu Praxedes
algo de novo aconteceu no nosso sertanejo. O ser se sentiu tocado, afagado, ser
habitado. Se espírito ou não, pouco importa, as gaivotas também são gente, e
lhe trazem saudades do filho Santino. Elas lhe trazem também aquela vontade danada
de conhecer a Sicília de perto. «Seria bom mesmo ir lá pra Itália e pedir a
benção pro Papa»...
Mas não tem jeito não. Seu Antonio é cabra macho. É homem teimoso, pacato. Não conhece lugar nenhum, e nem faz questão. «Não sou
cigano mesmo», insiste. E então, acabada a negociação à beira da praia, as
mulheres vão embora com seus peixes e os pescadores com o seu tanto para
vender no mercado. Não são ainda nem nove horas da manhã. Seu Antonio fica só, naquele pedaço de mundo que Deus fez para ele ajuizar. Só não, fica ali com as
gaivotas. Olha o céu azul. «E depois, vai que este avião cai de verdade? Se eu
morrer quero uma reza no Pai Nosso, na Virgem Maria, uma boa missa, na nossa
boa língua. Pra Itália? Fazer o que lá? Não vou não. Não carece... » E assim o ilustre sertanejo se convence mais uma vez.