quinta-feira, 3 de julho de 2008

Amor de passagem


“Calma aí! Tem uma senhora aqui!”. “Oh pessoal, cuidado com a velhinha!”. Já passava da uma da manhã e o ônibus, abarrotado, parecia estar cumprindo seu rush retardatário. Jovens retornavam de bares, turistas, do passeio, torcedores desanimados comentavam a derrota do time no campeonato continental. Em cada parada, novos passageiros forçavam a entrada, exaustos de haver esperado a ocasião de poder regressar a casa. Em cada novo ponto de ônibus, o discurso coletivo se repetia dentro do veículo: “Cuidado com a senhora!”, “Atenção aqui amigo, ôôu!”, e uma voz sufocadamente bem-humorada intervinha: “Hei gente, estou aqui embaixo, me vêem?”. No meio da multidão motorizada uma velhinha de 78 anos se tornou a protagonista de todos os afetos transitórios. Cabelos brancos presos com fivela, vestido florido e bolsa à tira colo. De tão pequena não atingia sequer a altura do meu busto. O ônibus ia apressado porque o motorista também havia esperado o dia todo para voltar a casa. Naquele anseio coletivo de retorno ao lar, um tombava sobre o outro, e nas curvas improvisadas todos pendiam em coreografia para o mesmo lado. E a velhinha ali embaixo, no centro do ônibus, todo o tempo a falar e rir em plongée. Fez-me recordar a minha avó, na fala e no gesto, e no regozijo tímido de se tornar o núcleo das atenções. A ternura me veio como picada de borrachudo e rapidamente se espalhou pelo corpo numa titilação de puerilidade. Durante todo o trajeto conversamos e nos divertimos, trocamos olhares e cuidados com cumplicidade familiar. Quando chegou o momento de eu descer, experimentei a tristeza de despedir-me de uma avó desconhecida, mas conhecida. Já na calçada, olhei o ônibus que se afastava e me arrependi de não ter pedido à velhinha o seu número de telefone, ou mesmo de não lhe ter perguntado sobre netos e as visitas de domingo. Enquanto o ônibus partia, percebi que já sentia saudades daquela senhora e entendi que o amor de passagem me transportou a outros viveres nostálgicos. Dentro do ônibus vi partir pela segunda vez a minha avó...

(Imagem: Women Running on the Beach. Pablo Picasso, 1924)

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