quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A propósito de liberdade

O filme era de ficção, com roteiro definido e tudo o mais. Todavia, Pasquale possui um talento incrível para improvisar e roubar da realidade um material precioso. Fiz assistência de direção no seu filme que rodamos na Sicília no mês passado. Uma história de amor tragicômica que ironiza o catolicismo, mas não só. Um filme de humor cínico: dois losers, Maria e Manlio, são voluntários em uma paróquia e levam a hóstia à casa de velhinhos doentes. Eles vivem aventuras, descobrem o rock, a beleza. Surge entre eles uma história de amor torta. Em uma manhã, enquanto tomávamos o café, Pasquale decidiu: Vamos à casa de uma querida amiga. Se chama Betsy e tem 80 anos. Levamos a câmera e apenas um refletor de 1000. Vamos ver o que acontece. Chegando à casa de Betsy descobri que apesar de ser cega, manca, viúva e de morar sozinha, se vira melhor do que muito idoso por aí. Mas a solidão encontra sempre uma ocasião de esquive e a nossa presença ali destampou em Betsy a vontade de falar, falar, falar. Contar causos, cantar músicas, era um espetáculo de si própria feito a um público que ela não vê. Mamma mia, que personagem.

No filme, Maria, a protagonista loser, está apaixonada por Manlio, que a despreza. Quando vai à casa de Betsy entregar-lhe a hóstia e rezar a Ave Maria, Maria cai em prantos e pede conselho à velha senhora. Betsy foi orientada: finja que é realidade, que Maria é uma sua amiga e que está te contando um problema. Tente ajudá-la.

Pronto. Betsy, que não é atriz profissional, mas uma idosa em final de vida que se esquivou da solidão na ocasião, interpretou um personagem estupendo que, na verdade, era si mesma. Foi incrível. Era como se a ação de interpretar a libertasse da responsabilidade de seu próprio caráter. Como se a sua intimidade real legitimada pela câmera do cinema fosse transportada espontaneamente ao campo da ficção. Veio fora um diálogo impressionante e inesperado:

- Maria, você é uma pessoa doce, maravilhosa, sensível. Imagino o quanto está sofrendo por aquele cretino. Manlio! Que nome! Esse Manlio aí vale a pena é? Eu acho que não. Aposto que ele é duro de coração. É isso. Duro de coração! E quando um homem é duro de coração só tem uma saída: dar-lhe uma porrada e bye bye. Enche esse Manlio de porrada e vai embora cantando: Tu non sei l’amore... non sei l’amore... (uma canção italiana antiga muito popular).

Em outra cena, Maria está feliz porque Manlio a convidou para uma viagem que para ela é como se fosse uma lua de mel – fazer uma peregrinação com uma velha que está para morrer. E então Betsy lhe diz com a sua voz aguda de quem tem oitenta anos e usa dentadura:

- Ah Maria, que lindo. Uma viagem com Manlio! Estou contenta por você. Olha, faça a peregrinação direitinho e chegando lá agradeça a Nossa Senhora viu? Lembre-se de rezar e agradecê-la por tudo. Mas olha, vou te contar uma coisa: é claro que em uma peregrinação o sentimento cristão é o que interessa, rezar, agradecer a Nossa Senhora, mas sabe Maria, você não pode se esquecer que o sexo também é muito importante. É... sexo... sobre esse tal de sexo as pessoas nunca falam, você já percebeu? Nós, mulheres somos muito mal informadas sobre sexo você não acha? E as esposas então, coitadas, tenho dó! Na verdade o sexo é uma coisa muito importante Maria... claro, não é que eu saiba muito sobre ele. É uma pena! Sabe, na China existem laboratórios de sexo em que as mulheres vão e recebem informações, explicações, tudo! Aqui o que temos? Nada! Se eu fosse jovem eu pegaria imediatamente um avião para a China e voltaria para cá experiente, praticamente uma professora!

Foi um momento hilariante para todos nós, inesperado, vivo. Betsy foi aplaudida durante minutos, assovios e tudo o mais. Ela sorria, estava contente de ter interpretado, de ter sido reconhecida, nossa musa. E com timidez altiva nos revelou o sonho não realizado de ter sido atriz...

Entretanto, no dia seguinte, a velhinha nos ligou. Por telefone ponderou: Sabe, estava pensando que ontem fui incoerente no meu diálogo com Maria. Maria estava sofrendo porque Manlio não a amava. Mas não é com violência que se resolve essas coisas do coração. Não acho que Maria deve espancá-lo, mas tratá-lo com amor e respeito... Deve cantar assim pra ele: "non mi lasciare, amore, amore... dovunque andare ti cercherò..."( não me deixe, amor, aonde você for te procurarei... - uma música antiga italiana). E mesmo o sexo, penso que seja algo sagrado, ligado ao matrimônio... E por aí foi... Betsy, que não é atriz, mas uma idosa em final de vida que se esquivou da sua solidão naquela ocasião, estava em culpa de ter interpretado a si própria, decodificando improvisadamente a sua ideologia reprimida. Mas nesta contradição do ser, coabitando-se autor e personagem, Betsy optou por não legitimar-se. Pois é, terreno intricado para uma senhora: depois de oitenta anos de vida afrontou os valores culturais da sua sociedade. Não agüentou. A liberdade é um osso duro de roer...

2 comentários:

Drika Nery disse...

Sensacional essa personagem! E que frases geniais ela soltou! Eu, que ‘desperdiço’ meu tempo escrevendo diálogos, fiquei bege com o talento da jovem senhora para cultivar pérolas.
Grande beijo, Ná.

Anahí Borges disse...

Oi Dri! (desculpe-me pelos acentos, estou utilizando um teclado italiano)

é verdade. Betsy é sensacional!
depois te mostro em imagens... mamma mia! que expressividade!

Hoje estava lendo um comentàrio de Francesco Rosi sobre o seu històrico filme "O Bandido Giuliano" ("Salvatore Giuliano"). O filme conta a història, em tom investigativo, deste bandido siciliano ligado à màfia e assassinado em 1950. Rosi decidiu realizà-lo exatamente dez anos depois da morte de Giuliano, na cidade em que ele morava, explorando os fatos de sua vida, escolhendo pessoas que conviveram com ele para interpretar personagens, etc. Ou seja, Rosi queria atingir o màximo da verdade na representaçào e definiu a sua obra como "psicodrama". Para fazer a màe de Giuliano ele escolheu uma camponesa cujo filho havia sido morto como ele. Desta forma, a camponesa, que nào era uma atriz profissonal, mas uma màe em luto pela morte de seu filho, realizou uma personagem estupenda. Na cena em que ve Giuliano morto, a senhora se joga no chào, toca e abraça o cadàver com tamanha verdade que a equipe toda chorou nos bastidores de emoçào, inclusive o pròprio Rosi. Diz-se que a senhora tinha uma inteligència rara para interpretar (inclusive atenta às marcaçòes de cena), mas a verdade è que estava sofrendo de verdade, projetando em sua personagem uma realidade que lhe pertencia. Rosi admitiu que se sentia em culpa por isso e rodou somente 3 takes com medo de que se rodasse um outro a senhora morresse do coraçào.
Curioso o cinema nào? Perverso e cruel também...

Beijào Dri!