terça-feira, 14 de abril de 2009

E de amor? Se vive?

ou Da experiência do amor na terceira idade

Em São Paulo o meu vizinho de casa sofre de amor aos setenta e cinco anos de idade. Aposentado dos correios, tem um filho no exterior e a neta militar. Uma vida sistemada, a idade em que se pensa que tudo já foi visto, revisto e carimbado. Até que a sua rotina foi violentamente interrompida com a fuga da esposa. Quarenta e cinco anos de matrimônio agora são mil espadas de gelo que lhe perfuram o peito. Em poucos meses a mulher perdeu tudo no bingo: dinheiro, jóias e o carro com o qual andavam à missa aos domingos na igreja do Brás.
A velhinha se apaixonou por um homem viciado no jogo como ela. Fujiram juntos para tentar outras vitórias. O velhinho restou.
Pontualmente, na hora do jantar, a sua solidão é forasteira. Pela janela do meu quarto entra galopante o som do lamento das canções de amor que o senhor escuta ao máximo volume. Sou convidada a participar do seu luto. Chitãozinho e Xororó. Zezé de Camargo e Luciano. A música popular adolorada atravessa as janelas das casas do quarteirão enquanto o homem se apaga com doses de cachaça mineira.
Aos setenta e cinco anos de idade o coração ainda é território estrangeiro.

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Na cidade de Trapani, na Sicilia, uma senhora de oitenta anos lava os pratos do jantar. É pequenina, sorridente, corcunda e os cabelos brancos muito bem penteados. O negro do vestido é a tradição católica siciliana que encontra os pontos de brilho nos longos colares de ouro com a imagem de Jesus que se estendem sobre os seios.
No forno de pedra da sua casa o filho realiza as obras de arte da culinária siciliana com tomates, aliche, azeitonas, calabresa, alho, berinjela, abobrinha - pizzas rústicas para um amplo grupo de amigos e parentes. A pizzada siciliana tradicionalmente calorosa, acolhedora, abundante... as portas abertas recebem o perfume do mar.
Observando a pequena senhora curvada sobre a pia da cozinha me ofereço para ajudá-la. Com um sorriso, gentilmente rejeita a minha compaixão. São mais de sessenta anos de matrimônio, muita disposição e bom-humor. Senhorita, sabe por quê vocè me vê assim alegre e cheia de energia? Porque estou apaixonada. Aquele ali é o meu marido, vê? Doze anos de namoro e cinquenta de casamento.
O senhor se aproxima, curioso. Quiçá que coisa a mulher está contando à moça estrangeira? A timidez lhe colore o rosto quando a velhinha se agarra forte à sua mão mostrando-me as três alianças: casamento, bodas de prata e bodas de ouro.
Daqui à pouco quando vamos para a cama nos beijamos e cada um fecha os olhos e faz o seu sonho. Quando acordamos, nos beijamos e cada um recomeça um outro dia. Sabe por quê sou assim contente? Porque sou uma mulher apaixonada.
E diante da declaração de amor da esposa, o senhor se avermelha...

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Eisenstein Mexicano





De dezembro de 1930 a fevereiro de 1932 o cineasta soviético Sergei Eisenstein (“A greve”, “O Encouraçado Potemkin”, “Outubro”...) viveu no México, absorvendo realidades e recolhendo material para realizar o filme “Que Viva México”. Antes mesmo de se afirmar como cineasta, em 1924, o talento de Eisenstein se manifestou primeiro na pintura, influenciado desde a infância pela obra de Honoré Daumier e Jacques Callot. A produção de desenhos caricaturais provenientes da veia cômica e grotesca de Eisenstein é interrompida justamente quando o pintor (e então ator) dá início à sua atividade cinematográfica. Uma pausa que, no entanto, é sepultada a partir da sua experiência mexicana: “...depois da renúncia de desenhar e o novo retorno ao desenho – paraíso perdido e novamente reencontrado da gráfica – me ocorreu no México... comecei de novo a desenhar”.

O amor e o fascínio pela cultura e paisagens mexicanas esculpiram para sempre o imaginário do cineasta soviético, uma obsessão quase ancestral que chancelou seus posteriores excêntricos comportamentos como, por exemplo, aquele de desenhar figuras mexicanas no storyboard e anotações para “Ivan, o Terrível”, já dez anos depois do seu retorno a Mosca. Ou mesmo, poucas horas antes de morrer, desenhar a lápis em uma folha de papel a tradicional caveira do ritual mexicano para o dia dos mortos. Eisenstein conservou pendurado na parede do seu quarto russo um tapete decorado com motivos da cultura asteca. Com este post pretendo homenagear o México e este grande cineasta, a relação de amor de um artista com uma cultura transcontinental aparentemente distante de si. O mestre da montagem no cinema em um país densamente marcado pela montagem, onde o percorrer o território é contemporaneamente um transferir-se no tempo, nos séculos de história...

Este reencontrar-se mítico que é não é efetivamente ocasional; a síntese de um poema da Vida, da Morte e da Imortalidade (uma referência à tríade que compõe a temática dos filmes de Eisenstein e a principal razão da sua expedição ao México). E apesar de tudo, Eisenstein não conseguiu concluir o seu filme... por diversas razões, a troupe retornou à Mosca e o material restou nos Estados Unidos sendo apropriado para realizações de outros filmes, alguns desses etnológicos e didáticos ... somente em 1979 que Grigori Aleksandrov, que havia participado do projeto original, a partir dos storyboards originais reconstruiu a montagem para “Que Viva México”.





No meu encontro com o México

ele se revelou em toda

a variedade das suas contradições...

Simplicidade da monumentalidade e

incontrabilidade no barroco: nos dois

aspectos seus, espanhol e asteca...

Há dezenas de milhares

se entrevêem as cúpulas... e as cruzes...

Mas não é mérito particular dos católicos.

Os lugares não foram eles a escolher. São

aqueles das antigas pirâmides, um tempo coroado

por templos astecas e toltecas...

Destruídos os templos, aqueles ergueram as suas

igrejas exatamente nos mesmos lugares,

em cima das pirâmides,

com a desculpa de não desorientar


os itinerários das peregrinações, confluentes

há milênios de todos os ângulos do país

aos pés justamente dessas pirâmides...

Afiados espinhos...penetram os corpos

daqueles que amarram nas costas com cordas

troncos verticais dos cactus atrelados em cruz,

e por horas

arrastam-se em direção ao cume das pirâmides

a glorificar as nossas senhoras católicas

de Guadalupe, Los Remedios,

Santa Maria Tonantzintla...

Quem sabe se por honor a Nossa Senhora

ou não justamente a uma deusa mais antiga,

a mãe dos deuses, que só

aparentemente cedeu o seu lugar...

à Mãe de Deus do cristianismo,

mas inequivocamente restou

dentro das sucessivas gerações

dos descendentes dos fundadores do seu culto.

Sergei Eisenstein







Sobre as áridas rochas

ao redor de Tasco estão estrelas escarlates de flores.

Chamam-nos “sangre de toros”. Possuem

a mesma linha, ardente em marca de cor,

da fonte de sangue na qual arde

a linha brilhante traçada pela espada

do matador que penetra no corpo negro do touro...

Aqui se paga com vida.

O chifre atravessa o homem.

O aço, brilhando, penetra na besta.

Não tem outra saída...

O preço é a morte.

Pagamento o sangue.

Ainda se pelo preço do sangue, aqui o homem

mistura-se com a besta.

Ainda se pelo preço da vida, aqui atraversa

a barreira que os divide

em série irredutíveis.

Caso contrário, qual teria sido a força

de atração deste espetáculo que em um único grito

une multidões de milhares de pessoas

entre os muros agitados dos circos

nos dias de sol das “corridas”?...

Del resto, esta agora é martírio

do matador, agora do touro.

Existe até mesmo o desenho... de um touro

crucificado, perfurado de flechas,

como um São Sebastião.

Não é culpa minha.

É o México que no mesmo elemento

da festividade dominical mistura

o sangue de Cristo da missa matutina

na catedral às torrentes de sangue taurino

da corrida diuturna

na arena da cidade...

Sergei Eisenstein







PS – Os desenhos e textos de Eisenstein postados foram retirados de um livro raro (o comprei em um sebo no centro) “I Disegni Messicani di Ejzenstein”, Beniamino Carucci Editore.