sábado, 20 de fevereiro de 2010

Fellini, a neve e a lesma

Para os meus pais

«Oh cretina! Fica aí dormindo fica, aqui fora tá nevando, stronza! vafanculo va’, e depois não reclama que nunca viu a neve! Mannaggia!»

Acordei assustada, com a cara colada no interfone que havia tocado ininterruptamente - 12, 13, 14 vezes. Incrível! Mas quem é este louco, neurótico, mal-educado? O que quer comigo? Ai crê em Deus padre: pensamentos recém-despertados me escoltaram durante todo o descompassado percurso feito da cama até o interfone à porta, quando decidi atendê-lo. Era Guido, o garoto da voz de trovão, olhos café, cabelos penteados para o lado - estilo estudante nerd americano. Estimado amigo, anjo da guarda pagão. Me salva de tantas, apesar do seu discreto e inócuo catolicismo. Se apresenta a minha casa especialmente para esta tarefa. Olha que eu havia lido no jornal a previsão do tempo para aquela manhã. Mas depois, dormindo, esqueci. Troquei o sonho da neve por outros tantos onirismos talvez menos brancos. «Entendeu? Guido, você tá aí ainda?». «Oh cretina, desce logo que o gelo vai derreter, cazzo!». Pois é, nem sempre é tempo de maçãs...

Quando abri o portão vi a cidade coberta por uma crosta de açúcar de confeiteiro. Ou farinha. Ou bicarbonato de sódio. Ou a raspadinha de gelo vendida na praia no verão. Assopraram pó de giz por toda Roma! Era a neve, que pela primeira vez se apresentava a mim pessoalmente, láctea e luzente, o concreto armado erguido na ausência do projeto arquitetônico em plástica.

Caminhando pela rua escrutada por Guido, que apesar de não ter asas, vive imerso nas estrelas, eu observava ao redor a paisagem transfigurada. A noite havia estendido um véu de noiva sobre a cidade adormecida. E agora que ela, assim como eu, estava desperta, os fios iniciavam a se desenlaçar. Gotas d’água caiam do alto, não das nuvens, mas dos tetos das casas, dos prédios, das árvores: ligeira chuva feita da água que se derretia, enquanto a luz branca preenchia o cenário urbano, refletida pela superfície cintilante do gelo. Presenciar os flocos de neve que grudam no casaco, deitam-se sobre o guarda-chuva ou se estacionam na ponta do nariz, é uma experiência de realidade que te faz buscar repertório no imaginário filtrado e produzido pelo cinema. É uma experiência imediata de choque emocional e um constante exercício lógico e afetivo de elaboração do real, do virtual e das possíveis relações de poder entre estas dimensões. No entanto, se por um lado existe toda esta (re) elaboração do próprio imaginário domesticado, por outro existe o efeito do real na fantasia humana. Ou seja, a velha pergunta: o que acontece com a fantasia humana quando ela se realiza?

Brincando de guerra com bolas de neve entendi uma coisa: não é verdade que a bola ao atingir o inimigo se despedaça em partes brancas e aparentemente crocantes de gelo. Não é verdade que após a bola se estraçalhar no teu casaco, com a mão você limpa os resquícios brancos, como se fossem migalhas de balas de coco. Para ser sincera, a bola de neve quando gruda no casaco parece uma massa de farinha, úmida, um cocô transparente e inodoro que fica lá, atacado, descolando lentamente. E Gradisca, em "Amarcord", de Fellini? Lembro-me quando durante a histórica nevasca em Rimini, todos os habitantes estão eufóricos, observando a paisagem das suas janelas, das portas, em pé no meio da rua. O pavão que voa. Gradisca passeia pela cidade com o seu lenço vermelho e os garotos brincando lhe lançam bolas de neve que se estraçalham no seu exuberante traseiro. Os flocos que caem do céu são leves como espuma. A neve é cinematograficamente mágica, pictoricamente eterna, dramaturgicamente sintética. Se o filme de Pasolini se chamasse “O que é a neve” ao invés de “O que são as nuvens”, Totó teria respondido igualmente a Ninetto Davoli a sua pergunta “O que é a neve?”– uma desmesurada maravilhosa beleza da Criação. Bem, rev(f)erências à parte, destacada da representação artística, a neve palpável merece o seu lugar na minha mitologia pessoal. Se Guido não me tivesse despertado, dificilmente eu poderia ressignificar a experiência com o gelo. A bola de neve lançada no casaco, parece uma lesma grudada que lentamente desce, desce, desce, deixando impresso atrás de si o seu trajeto molhado.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

chá sem bolachas


Um dia de primavera sem sol uma mulher com um belíssimo nome grego estava parada à janela da cozinha olhando lá fora a neblina que deixava a paisagem levemente imersa em um copo de leite. Estava quase melancólica quando escutou a campainha tocar. Ainda que fosse manhã cedo e não esperasse ninguém, decidiu abrir a porta após constatar através do visor que não conhecia aquela pessoa. Era uma dona de certa idade que lhe sorria com cabelos tingidos de loiro. “Que perfume de camomila”, comentou, assim que colocou o nariz dentro da sua casa. “É, deixei a chaleira acesa no fogo”. Em silêncio, as duas se sentaram à mesa da cozinha, e a loira adocicava com aspartame o chá na xícara. “Eu estava passando por aqui e pensei: por quê não?!”. Restaram outro tempo em silêncio. A mulher com o nome grego ofereceu-lhe biscoitos caseiros, mas a loira gentilmente rejeitou por causa da dieta, da pressão alta e do colesterol. No sofá da sala escutaram música lírica: “Puccini... esplêndido!”, diziam concomitantemente. E repartiram pedaços de vozes, memórias, fragmentos desconexos, como se costurassem juntas uma colcha de retalhos para decorar o pavimento de lenho. Até que a senhora, já de pé com a bolsa à tira colo, atribuiu às vidas um denominador comum, comunicando-lhe que eram filhas do mesmo maestro de orquestra, que as suas respectivas mães não se conheceram em vida, e que não à toa uma era soprano e a outra, contralto. Emocionada com a revelação da desconhecida-conhecida que agora era também a sua irmã, a mulher não teve tempo para sentir. A loira se despediu ligeira – tinha o neto à saída da escola. E enquanto uma abria a porta à outra, e a outra acariciava a face da uma, combinaram de se rever em alguma outra ocasião. Da janela da cozinha, a mulher com um belíssimo nome grego observou a irmã que atravessava a neblina como se entrasse em um copo de leite. Era ainda primavera.

(Imagem: Mulher ao espelho, Pablo Picasso, 1932)