domingo, 7 de fevereiro de 2010

chá sem bolachas


Um dia de primavera sem sol uma mulher com um belíssimo nome grego estava parada à janela da cozinha olhando lá fora a neblina que deixava a paisagem levemente imersa em um copo de leite. Estava quase melancólica quando escutou a campainha tocar. Ainda que fosse manhã cedo e não esperasse ninguém, decidiu abrir a porta após constatar através do visor que não conhecia aquela pessoa. Era uma dona de certa idade que lhe sorria com cabelos tingidos de loiro. “Que perfume de camomila”, comentou, assim que colocou o nariz dentro da sua casa. “É, deixei a chaleira acesa no fogo”. Em silêncio, as duas se sentaram à mesa da cozinha, e a loira adocicava com aspartame o chá na xícara. “Eu estava passando por aqui e pensei: por quê não?!”. Restaram outro tempo em silêncio. A mulher com o nome grego ofereceu-lhe biscoitos caseiros, mas a loira gentilmente rejeitou por causa da dieta, da pressão alta e do colesterol. No sofá da sala escutaram música lírica: “Puccini... esplêndido!”, diziam concomitantemente. E repartiram pedaços de vozes, memórias, fragmentos desconexos, como se costurassem juntas uma colcha de retalhos para decorar o pavimento de lenho. Até que a senhora, já de pé com a bolsa à tira colo, atribuiu às vidas um denominador comum, comunicando-lhe que eram filhas do mesmo maestro de orquestra, que as suas respectivas mães não se conheceram em vida, e que não à toa uma era soprano e a outra, contralto. Emocionada com a revelação da desconhecida-conhecida que agora era também a sua irmã, a mulher não teve tempo para sentir. A loira se despediu ligeira – tinha o neto à saída da escola. E enquanto uma abria a porta à outra, e a outra acariciava a face da uma, combinaram de se rever em alguma outra ocasião. Da janela da cozinha, a mulher com um belíssimo nome grego observou a irmã que atravessava a neblina como se entrasse em um copo de leite. Era ainda primavera.

(Imagem: Mulher ao espelho, Pablo Picasso, 1932)

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