Quando a expurgaram no mundo não lhe disseram que ela estava
condenada à existência.
sábado, 24 de setembro de 2016
Sombras
Dona Margarida abre a janela do seu quarto - é manhã de sol. A senhora sempre gostou de
manhãs assim, de invernos. É uma pena que o edifício fora construído bem ali,
em frente à sua casa. Durante cinquenta e quatro invernos o sol bateu em sua
janela para despertá-la. Este será o primeiro inverno que Dona Margarida terá que
acordar por si só: o sol está barrado pelo prédio.
Nossa! Nove horas! Novamente
atrasada.
Durante cinqüenta e quatro
invernos, Dona Margarida acordou pontualmente às sete. Desde a construção do
edifício a sua rotina mudou e está aborrecida com isso. Após abrir a janela, a
senhora se põe a chorar: é saudade do sol, saudade dos pais que deixou em Minas
Gerais, saudade da vida que não teve nesses oitenta e seis anos.
Quando decidiu se mudar
para São Paulo, Margarida tinha cinqüenta mil cruzeiros e o magistério recém
concluído. Na nova cidade trabalhou como garçonete, dama de companhia,
balconista de loja. Aposentou-se como professora primária da rede pública.
Morou no Bexiga, no Brás, no Parque D. Pedro, até que conseguiu, depois de
muito economizar, comprar uma casa no bairro do Mandaqui. É térrea e batia sol
o dia inteiro, mas com a construção do edifício a casa se tornou mais escura e úmida.
Quando moça, ainda morando
no sítio com os pais, Margarida se apaixonou por um rapaz que conheceu na missa
de domingo. Naquela época era comum os jovens apaixonados trocarem cartas,
escreverem poemas de amor com caneta de tinteiro. A paixão era escrita, chegava
dentro de um envelope, passava por debaixo da porta ou por entre as persianas
da janela do quarto. Certo dia, a correspondência de Marcelo não chegou à sua
casa e Margarida percebeu que não mais chegaria. Assim foi com a de João, com a
de Henrique e com a de Miguel, estes em São Paulo.
Dona Margarida chora,
debruçada na janela que acabou de abrir. É saudade do sol, saudade do Marcelo,
do João, do Henrique e do Miguel.
Mindinho, o gato, passa
por entre suas pernas, pedindo-lhe comida.
Nossa! Dez horas!
Novamente atrasada para alimentar o gato.
Toco, o cachorro, espera
pela dona para passear na rua. Dona Margarida ainda terá que ir à quitanda do
Sr. Manuel: são às quartas-feiras que chegam as laranjas limas. E depois terá
que passar no açougue para comprar a mistura do almoço.
Nossa! Onze horas! O vaso
de violetas cor de rosas aguarda ser regado.
Desde a construção do
edifício o sol não bate mais na janela do quarto da Dona Margarida. O vaso de
violetas, que há anos foi colocado no parapeito, encontra-se seco e maltratado.
Desde a construção do edifício Dona Margarida não regou mais suas violetas.
Todos os dias a senhora
chora debruçada em sua janela. É saudade. Saudade do sol. Saudade da vida que
não teve.
*Imagem: Four Trees, Egon Schiele, 1915.
*Imagem: Four Trees, Egon Schiele, 1915.
sábado, 17 de setembro de 2016
Aforismo II
Sem saber o que fazer com a agulha fincada no peito ela resolveu
costurar o coração com pequenos retalhos de seda.
sexta-feira, 16 de setembro de 2016
Antônio e Diana
Nunca gostou do pai. Mas é indelicado dizê-lo visto
que mora com ele há exatos quarenta anos. Antônio é o filho mais velho, o que
restou na casa cujas paredes carcomidas denunciam o passar do tempo. As manchas
estão também na sua alma. A mãe morreu quando a caçula nasceu e ficaram os
três: pai, ele e Diana. A irmã vive no exterior desde muito jovem e raramente
manda notícias. Foi pai quem a mandou pra longe para calar o amor que começava
a gritar entre os dois irmãos. Diana e Antônio se apaixonaram ainda crianças. A
ausência do pai, sempre metido em botecos, foi refúgio e consolo compartilhado
em abraços e carícias pueris. Na adolescência seus pares românticos eram meras
reproduções um do outro: nos gestos, na
cor dos olhos, na forma dos cabelos, no tom da voz. Antônio chegou a namorar
uma menina chamada Diana só para poder pronunciar seu nome sem sentir culpa.
Mas as comportas da represa se abriram e tudo foi inundado. As árvores tombaram
com suas raízes entrelaçadas. A borboleta foi arrastada pelo vendaval e o
pássaro se descobriu sem asas no meio do voo. Afogou-se. Pai virou seu maior
inimigo: mandou Diana pra longe. Antônio nunca mais achou seu lugar no mundo.
Trocou o trabalho de continuo na firma pelo vício, tal como o pai, não saia dos
botecos e vivia caído pelas eiras e beiras a chorar pela irmã. Sem emprego, sem
amigos, sem mãe e só com a memória de um amor, Antônio se atirou do viaduto Santa Ifigênia. Tinha quarenta anos e nunca gostou do pai.
*Imagem: O abraço, Egon Schiele, 1917.
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