"Vaca no pasto é cachorro mastigando chiclete". Anahí Borges. Julho, 2008.
Vínhamos pelo Caminho de Santiago, deixando para trás o pequeno vilarejo rural, todo feito de pedras. A terra batida respondia ao excesso de sol levantando uma poeira densa feito farinha de rosca. Caminhávamos silenciosos quando encontramos a dita cuja. Uma senhora vaca, assim preta, assim grande, que espiava curiosa por entre as fendas do curral os peregrinos que passavam por ali. Os bezerros já estavam grandes o suficiente para estarem no canto por conta própria, a vaca queria mesmo é se socializar, mexer com aqueles que passavam ali a sua frente. Pecado que caminhavam apressados, não lhe davam atenção... os peregrinos do século vinte e um já são geneticamente motorizados. Nós paramos, e ali me lembrei de Guimarães Rosa.
Enquanto eu acariciava a cabeça da vaca percebi que ela parecia um cachorro... os cachorros que são assim, mexem a cabeça de um lado para o outro, para a frente, para trás, como se dissessem “Mais para cá”, “Agora mais para aqui”, “Isso, aí!”, orientando o trajeto das nossas mãos no gesto de afago e estampando na cara um prazer incontrolável. A vaca começou a me lamber: uma lambida de cachorro, alegre, afetuosa, histérica. Uma língua áspera que na ponta faz uma voltinha para fisgar o capim! Upa! A língua da vaca laçou o meu braço! Olé! E neste instante de comunhão ela me olhou, e dos seus olhos escorriam lágrimas em fluxo contínuo. “Felipe! Olha só aqui! A vaca está chorando!”. E Felipe, abandonando os bezerros que também estavam muito disponíveis para amizade, veio olhar a vaca que chorava. “Putz! É mesmo!”. E a vaca chorava, chorava, chorava...
Em “Sagarana”, de Guimarães Rosa, no conto “O Burrinho Pedrês”, um dos vaqueiros conta a história de um fazendeiro muito ruim chamado Madureira. Quando ele morreu, na noite do velório, os bovinos ficaram a noite inteira chamando no curral:
Os bois: “Ô Madureira, Madureira!”
As vacas respondiam: “Foi pros inferno, foi pros inferno!”
E assim repetiam durante toda a noite do velório. “Ô Madureira, Madureira!”, “Foi pros inferno, foi pros inferno!”
A vaca que conheci no Caminho de Santiago também se comunicava. Pela fenda do curral chamava amizades. E no íntimo de sua melancolia e abandono típicos da espécie, o ser se sentiu cachorro afagado, domesticado. Ser habitado. Chorou de emoção. E eu também chorei...
Vínhamos pelo Caminho de Santiago, deixando para trás o pequeno vilarejo rural, todo feito de pedras. A terra batida respondia ao excesso de sol levantando uma poeira densa feito farinha de rosca. Caminhávamos silenciosos quando encontramos a dita cuja. Uma senhora vaca, assim preta, assim grande, que espiava curiosa por entre as fendas do curral os peregrinos que passavam por ali. Os bezerros já estavam grandes o suficiente para estarem no canto por conta própria, a vaca queria mesmo é se socializar, mexer com aqueles que passavam ali a sua frente. Pecado que caminhavam apressados, não lhe davam atenção... os peregrinos do século vinte e um já são geneticamente motorizados. Nós paramos, e ali me lembrei de Guimarães Rosa.
Enquanto eu acariciava a cabeça da vaca percebi que ela parecia um cachorro... os cachorros que são assim, mexem a cabeça de um lado para o outro, para a frente, para trás, como se dissessem “Mais para cá”, “Agora mais para aqui”, “Isso, aí!”, orientando o trajeto das nossas mãos no gesto de afago e estampando na cara um prazer incontrolável. A vaca começou a me lamber: uma lambida de cachorro, alegre, afetuosa, histérica. Uma língua áspera que na ponta faz uma voltinha para fisgar o capim! Upa! A língua da vaca laçou o meu braço! Olé! E neste instante de comunhão ela me olhou, e dos seus olhos escorriam lágrimas em fluxo contínuo. “Felipe! Olha só aqui! A vaca está chorando!”. E Felipe, abandonando os bezerros que também estavam muito disponíveis para amizade, veio olhar a vaca que chorava. “Putz! É mesmo!”. E a vaca chorava, chorava, chorava...
Em “Sagarana”, de Guimarães Rosa, no conto “O Burrinho Pedrês”, um dos vaqueiros conta a história de um fazendeiro muito ruim chamado Madureira. Quando ele morreu, na noite do velório, os bovinos ficaram a noite inteira chamando no curral:
Os bois: “Ô Madureira, Madureira!”
As vacas respondiam: “Foi pros inferno, foi pros inferno!”
E assim repetiam durante toda a noite do velório. “Ô Madureira, Madureira!”, “Foi pros inferno, foi pros inferno!”
A vaca que conheci no Caminho de Santiago também se comunicava. Pela fenda do curral chamava amizades. E no íntimo de sua melancolia e abandono típicos da espécie, o ser se sentiu cachorro afagado, domesticado. Ser habitado. Chorou de emoção. E eu também chorei...
2 comentários:
Linda essa tua experiência no caminho de Santiago. Lindo o texto também. Guimarães Rosa disse para numa entrevista famosa para um editor alemão, que ele era vaqueiro. Ou seja, ele, um diplomata, se auto-intitulava vaqueiro pela intimidade com o mundo da vaquerama, como ele dizia. Noto também essa tua intimidade. Em outro texto do blog você, sobre tourada espanhola, você também cria a imagem do boi como um cachorro correndo atrás da bola... Parece que tem um filme em que um camelo chora ou faz algo humano, como essa tua vaca. Olhar que você não retrata na película, você o faz na palavra. Muito legal!
Avani
é..., também acho as vacas fofas. Aliás, o lisocão, que está doentinho, às vezes parece uma vaca também.
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