sábado, 11 de outubro de 2008

dança (texto)

A caixinha de música ficava ali, imóvel sobre a cabeceira da sua cama. Bastava que Margarida a abrisse para pegar alguma jóia nela guardada que Gymnopedie escapava, assim, apressada, sem nem pedir licença. Gymnopedie livre compassava o bailar do casal de madeira que rodava sobre o pequeno salão circular, isolado da realidade por uma estufa de vidro. Aprisionados, dançavam: ela em um vestido longo vermelho, ele em fraque. Quando menina Margarida assistia aos dançarinos esboçando neles o desatino de tornar-se bailarina. O defeito da perna. Não deu.

Margarida cresceu. Acreditava que teria por amante um homem elegante como o boneco de fraque que girava no salão da sua caixinha de música. Mesmo manca de uma perna sentia-se apta a dançar com ele por toda a vida. Gymnopedie lhes faria resvalar, ir, voltar, virar, revolver na enorme sala de vidro. Não deu. Gymnopedie traiçoeira, nefária, maldita.

Margarida envelheceu solteira com a caixinha de música sobre a cabeceira da cama. Foram setenta anos de longas noites em que a abria buscando distração: Gymnopedie fugida a conduzia por lugares quiméricos. Gymnopedie alquimista, utópica, fascinadora.

Naquela noite de menos três graus Margarida não conseguia dormir. Tossia, suava, passava, sozinha. Com a cabeça escorada em medos resolveu abrir a caixinha. Ela usava um vestido vermelho rodante. Um homem elegantemente a tomou nos braços, girando com ela pelo salão de vidro. A claridade cintilava nos detalhes do seu vestido que se agitava alforriado. Gymnopedie emancipada, bendita, serenava. A velha senhora não existia mais.

2 comentários:

kyu disse...

Minha avó me emprestou um livro ontem sobre religião. Na página 216, no capitulo sobre Masturbação, estava escrito que isso era um "desordenamento", e que o sexo é coisa de amor.

Anahí Borges disse...

Oi Lucas!
Mamma mia! Que livro esse aí hein? Desordenadamento é o que o discurso religioso opressivo causa à mente humana. Isso sim.
Sem grande pretensão, até porque a sexualidade é um argumento que não cabe em poucas linhas, eu diria que a masturbação também é um ato de amor: do indivíduo consigo mesmo. Amor-próprio? Auto-conhecimento?
Lasciamo perdere...
Beijão.
E toma cuidado com esses livros aí...