quarta-feira, 23 de junho de 2010
Minha declaração de amor a Roma
(Família de bicicleta. Anahí Borges, 09.02.2008)
(Inverno colorido. Anahí Borges, 10.02.2008)
(A sedutora. Anahí Borges, 09.02.2008)
(Fahrenheit 451. Anahí Borges, 06.02.2008)
(Serenata contemporânea. Anahí Borges, 05.02.2008
(Senhores no Parco Appia Antica. Anahí Borges, 08.02.2008)
(O ditador. Anahí Borges, 09.02.2008)
(Stazione metro Cipro. Anahí Borges, 04.02.2008)
(Mulheres mortas. Anahí Borges, 10.02.2008)
(Azul. Anahí Borges, 07.02.2008)
(Do Circo Massimo. Anahí Borges, 06.02.2008)
(Final de filme. Anahí Borges, 10.02.2008)
PS - Para ver mais fotos clicar: 12 fotos para um pseudo-calendário romano)
quinta-feira, 6 de maio de 2010
bandido anos dois mil
"O terceiro mundo vai explodir. Quem tiver de sapato não sobra!", foi o grito que Rogério Sganzerla colocou na boca do seu personagem nano com charuto no filme O Bandido da Luz Vermelha. Inesquecível e profético: “A solução pro Brasil é o extermínio total, eu sou poeta, eu vejo, o terceiro mundo vai explodir, vai explodir!”.
Quarenta anos se passaram e o grito aflito do Brasil ainda é possante. O berro da miséria aflita ecoa no terceiro mundo: América Latina, Ásia, África, Oriente Médio, Europa do Leste... Mas por questões históricas o rugido do nano de Sganzerla se estende hoje sobre outros territórios, ultrapassando as fronteiras do subdesenvolvimento. A cada barca clandestina naufragada nas costas do primeiro mundo com dezenas de desesperados utópicos eu escuto o grito de Sganzerla. A cada imigrado humilhado e massacrado, aglomerados de homens-ratos nos bueiros internacionais, eu escuto o grito de Sganzerla. Dezenas de seres humanos que atravessam desertos e ultrapassam barreiras em busca do sonho americano. O urro desafinado da humanidade capitalizada outorga a governos neonazistas a solução para a luta de classes contemporânea. Prezado Sganzerla, ironicamente o seu grito assume hoje outra direção, que, na verdade, não é outra, mas a contra-mão da primeira: o primeiro mundo vai explodir! É isso que penso cada vez que caminho pelas ruas...
texto originalmente publicado neste blog em 13 de novembro de 2008
sexta-feira, 23 de abril de 2010
Guimarães Rosa tinha razão
"Vaca no pasto é cachorro mastigando chiclete". Anahí Borges. Julho, 2008.
Vínhamos pelo Caminho de Santiago, deixando para trás o pequeno vilarejo rural, todo feito de pedras. A terra batida respondia ao excesso de sol levantando uma poeira densa feito farinha de rosca. Caminhávamos silenciosos quando encontramos a dita cuja. Uma senhora vaca, assim preta, assim grande, que espiava curiosa por entre as fendas do curral os peregrinos que passavam por ali. Os bezerros já estavam grandes o suficiente para estarem no canto por conta própria, a vaca queria mesmo é se socializar, mexer com aqueles que passavam ali a sua frente. Pecado que caminhavam apressados, não lhe davam atenção... os peregrinos do século vinte e um já são geneticamente motorizados. Nós paramos, e ali me lembrei de Guimarães Rosa.
Enquanto eu acariciava a cabeça da vaca percebi que ela parecia um cachorro... os cachorros que são assim, mexem a cabeça de um lado para o outro, para a frente, para trás, como se dissessem “Mais para cá”, “Agora mais para aqui”, “Isso, aí!”, orientando o trajeto das nossas mãos no gesto de afago e estampando na cara um prazer incontrolável. A vaca começou a me lamber: uma lambida de cachorro, alegre, afetuosa, histérica. Uma língua áspera que na ponta faz uma voltinha para fisgar o capim! Upa! A língua da vaca laçou o meu braço! Olé! E neste instante de comunhão ela me olhou, e dos seus olhos escorriam lágrimas em fluxo contínuo. “Felipe! Olha só aqui! A vaca está chorando!”. E Felipe, abandonando os bezerros que também estavam muito disponíveis para amizade, veio olhar a vaca que chorava. “Putz! É mesmo!”. E a vaca chorava, chorava, chorava...
Em “Sagarana”, de Guimarães Rosa, no conto “O Burrinho Pedrês”, um dos vaqueiros conta a história de um fazendeiro muito ruim chamado Madureira. Quando ele morreu, na noite do velório, os bovinos ficaram a noite inteira chamando no curral:
Os bois: “Ô Madureira, Madureira!”
As vacas respondiam: “Foi pros inferno, foi pros inferno!”
E assim repetiam durante toda a noite do velório. “Ô Madureira, Madureira!”, “Foi pros inferno, foi pros inferno!”
A vaca que conheci no Caminho de Santiago também se comunicava. Pela fenda do curral chamava amizades. E no íntimo de sua melancolia e abandono típicos da espécie, o ser se sentiu cachorro afagado, domesticado. Ser habitado. Chorou de emoção. E eu também chorei...
Vínhamos pelo Caminho de Santiago, deixando para trás o pequeno vilarejo rural, todo feito de pedras. A terra batida respondia ao excesso de sol levantando uma poeira densa feito farinha de rosca. Caminhávamos silenciosos quando encontramos a dita cuja. Uma senhora vaca, assim preta, assim grande, que espiava curiosa por entre as fendas do curral os peregrinos que passavam por ali. Os bezerros já estavam grandes o suficiente para estarem no canto por conta própria, a vaca queria mesmo é se socializar, mexer com aqueles que passavam ali a sua frente. Pecado que caminhavam apressados, não lhe davam atenção... os peregrinos do século vinte e um já são geneticamente motorizados. Nós paramos, e ali me lembrei de Guimarães Rosa.
Enquanto eu acariciava a cabeça da vaca percebi que ela parecia um cachorro... os cachorros que são assim, mexem a cabeça de um lado para o outro, para a frente, para trás, como se dissessem “Mais para cá”, “Agora mais para aqui”, “Isso, aí!”, orientando o trajeto das nossas mãos no gesto de afago e estampando na cara um prazer incontrolável. A vaca começou a me lamber: uma lambida de cachorro, alegre, afetuosa, histérica. Uma língua áspera que na ponta faz uma voltinha para fisgar o capim! Upa! A língua da vaca laçou o meu braço! Olé! E neste instante de comunhão ela me olhou, e dos seus olhos escorriam lágrimas em fluxo contínuo. “Felipe! Olha só aqui! A vaca está chorando!”. E Felipe, abandonando os bezerros que também estavam muito disponíveis para amizade, veio olhar a vaca que chorava. “Putz! É mesmo!”. E a vaca chorava, chorava, chorava...
Em “Sagarana”, de Guimarães Rosa, no conto “O Burrinho Pedrês”, um dos vaqueiros conta a história de um fazendeiro muito ruim chamado Madureira. Quando ele morreu, na noite do velório, os bovinos ficaram a noite inteira chamando no curral:
Os bois: “Ô Madureira, Madureira!”
As vacas respondiam: “Foi pros inferno, foi pros inferno!”
E assim repetiam durante toda a noite do velório. “Ô Madureira, Madureira!”, “Foi pros inferno, foi pros inferno!”
A vaca que conheci no Caminho de Santiago também se comunicava. Pela fenda do curral chamava amizades. E no íntimo de sua melancolia e abandono típicos da espécie, o ser se sentiu cachorro afagado, domesticado. Ser habitado. Chorou de emoção. E eu também chorei...
PS - texto publicado neste blog no dia 24.08.2008
sábado, 20 de fevereiro de 2010
Fellini, a neve e a lesma
Para os meus pais
«Oh cretina! Fica aí dormindo fica, aqui fora tá nevando, stronza! vafanculo va’, e depois não reclama que nunca viu a neve! Mannaggia!»
Acordei assustada, com a cara colada no interfone que havia tocado ininterruptamente - 12, 13, 14 vezes. Incrível! Mas quem é este louco, neurótico, mal-educado? O que quer comigo? Ai crê em Deus padre: pensamentos recém-despertados me escoltaram durante todo o descompassado percurso feito da cama até o interfone à porta, quando decidi atendê-lo. Era Guido, o garoto da voz de trovão, olhos café, cabelos penteados para o lado - estilo estudante nerd americano. Estimado amigo, anjo da guarda pagão. Me salva de tantas, apesar do seu discreto e inócuo catolicismo. Se apresenta a minha casa especialmente para esta tarefa. Olha que eu havia lido no jornal a previsão do tempo para aquela manhã. Mas depois, dormindo, esqueci. Troquei o sonho da neve por outros tantos onirismos talvez menos brancos. «Entendeu? Guido, você tá aí ainda?». «Oh cretina, desce logo que o gelo vai derreter, cazzo!». Pois é, nem sempre é tempo de maçãs...
Quando abri o portão vi a cidade coberta por uma crosta de açúcar de confeiteiro. Ou farinha. Ou bicarbonato de sódio. Ou a raspadinha de gelo vendida na praia no verão. Assopraram pó de giz por toda Roma! Era a neve, que pela primeira vez se apresentava a mim pessoalmente, láctea e luzente, o concreto armado erguido na ausência do projeto arquitetônico em plástica.
Caminhando pela rua escrutada por Guido, que apesar de não ter asas, vive imerso nas estrelas, eu observava ao redor a paisagem transfigurada. A noite havia estendido um véu de noiva sobre a cidade adormecida. E agora que ela, assim como eu, estava desperta, os fios iniciavam a se desenlaçar. Gotas d’água caiam do alto, não das nuvens, mas dos tetos das casas, dos prédios, das árvores: ligeira chuva feita da água que se derretia, enquanto a luz branca preenchia o cenário urbano, refletida pela superfície cintilante do gelo. Presenciar os flocos de neve que grudam no casaco, deitam-se sobre o guarda-chuva ou se estacionam na ponta do nariz, é uma experiência de realidade que te faz buscar repertório no imaginário filtrado e produzido pelo cinema. É uma experiência imediata de choque emocional e um constante exercício lógico e afetivo de elaboração do real, do virtual e das possíveis relações de poder entre estas dimensões. No entanto, se por um lado existe toda esta (re) elaboração do próprio imaginário domesticado, por outro existe o efeito do real na fantasia humana. Ou seja, a velha pergunta: o que acontece com a fantasia humana quando ela se realiza?
Brincando de guerra com bolas de neve entendi uma coisa: não é verdade que a bola ao atingir o inimigo se despedaça em partes brancas e aparentemente crocantes de gelo. Não é verdade que após a bola se estraçalhar no teu casaco, com a mão você limpa os resquícios brancos, como se fossem migalhas de balas de coco. Para ser sincera, a bola de neve quando gruda no casaco parece uma massa de farinha, úmida, um cocô transparente e inodoro que fica lá, atacado, descolando lentamente. E Gradisca, em "Amarcord", de Fellini? Lembro-me quando durante a histórica nevasca em Rimini, todos os habitantes estão eufóricos, observando a paisagem das suas janelas, das portas, em pé no meio da rua. O pavão que voa. Gradisca passeia pela cidade com o seu lenço vermelho e os garotos brincando lhe lançam bolas de neve que se estraçalham no seu exuberante traseiro. Os flocos que caem do céu são leves como espuma. A neve é cinematograficamente mágica, pictoricamente eterna, dramaturgicamente sintética. Se o filme de Pasolini se chamasse “O que é a neve” ao invés de “O que são as nuvens”, Totó teria respondido igualmente a Ninetto Davoli a sua pergunta “O que é a neve?”– uma desmesurada maravilhosa beleza da Criação. Bem, rev(f)erências à parte, destacada da representação artística, a neve palpável merece o seu lugar na minha mitologia pessoal. Se Guido não me tivesse despertado, dificilmente eu poderia ressignificar a experiência com o gelo. A bola de neve lançada no casaco, parece uma lesma grudada que lentamente desce, desce, desce, deixando impresso atrás de si o seu trajeto molhado.
«Oh cretina! Fica aí dormindo fica, aqui fora tá nevando, stronza! vafanculo va’, e depois não reclama que nunca viu a neve! Mannaggia!»
Acordei assustada, com a cara colada no interfone que havia tocado ininterruptamente - 12, 13, 14 vezes. Incrível! Mas quem é este louco, neurótico, mal-educado? O que quer comigo? Ai crê em Deus padre: pensamentos recém-despertados me escoltaram durante todo o descompassado percurso feito da cama até o interfone à porta, quando decidi atendê-lo. Era Guido, o garoto da voz de trovão, olhos café, cabelos penteados para o lado - estilo estudante nerd americano. Estimado amigo, anjo da guarda pagão. Me salva de tantas, apesar do seu discreto e inócuo catolicismo. Se apresenta a minha casa especialmente para esta tarefa. Olha que eu havia lido no jornal a previsão do tempo para aquela manhã. Mas depois, dormindo, esqueci. Troquei o sonho da neve por outros tantos onirismos talvez menos brancos. «Entendeu? Guido, você tá aí ainda?». «Oh cretina, desce logo que o gelo vai derreter, cazzo!». Pois é, nem sempre é tempo de maçãs...
Quando abri o portão vi a cidade coberta por uma crosta de açúcar de confeiteiro. Ou farinha. Ou bicarbonato de sódio. Ou a raspadinha de gelo vendida na praia no verão. Assopraram pó de giz por toda Roma! Era a neve, que pela primeira vez se apresentava a mim pessoalmente, láctea e luzente, o concreto armado erguido na ausência do projeto arquitetônico em plástica.
Caminhando pela rua escrutada por Guido, que apesar de não ter asas, vive imerso nas estrelas, eu observava ao redor a paisagem transfigurada. A noite havia estendido um véu de noiva sobre a cidade adormecida. E agora que ela, assim como eu, estava desperta, os fios iniciavam a se desenlaçar. Gotas d’água caiam do alto, não das nuvens, mas dos tetos das casas, dos prédios, das árvores: ligeira chuva feita da água que se derretia, enquanto a luz branca preenchia o cenário urbano, refletida pela superfície cintilante do gelo. Presenciar os flocos de neve que grudam no casaco, deitam-se sobre o guarda-chuva ou se estacionam na ponta do nariz, é uma experiência de realidade que te faz buscar repertório no imaginário filtrado e produzido pelo cinema. É uma experiência imediata de choque emocional e um constante exercício lógico e afetivo de elaboração do real, do virtual e das possíveis relações de poder entre estas dimensões. No entanto, se por um lado existe toda esta (re) elaboração do próprio imaginário domesticado, por outro existe o efeito do real na fantasia humana. Ou seja, a velha pergunta: o que acontece com a fantasia humana quando ela se realiza?
Brincando de guerra com bolas de neve entendi uma coisa: não é verdade que a bola ao atingir o inimigo se despedaça em partes brancas e aparentemente crocantes de gelo. Não é verdade que após a bola se estraçalhar no teu casaco, com a mão você limpa os resquícios brancos, como se fossem migalhas de balas de coco. Para ser sincera, a bola de neve quando gruda no casaco parece uma massa de farinha, úmida, um cocô transparente e inodoro que fica lá, atacado, descolando lentamente. E Gradisca, em "Amarcord", de Fellini? Lembro-me quando durante a histórica nevasca em Rimini, todos os habitantes estão eufóricos, observando a paisagem das suas janelas, das portas, em pé no meio da rua. O pavão que voa. Gradisca passeia pela cidade com o seu lenço vermelho e os garotos brincando lhe lançam bolas de neve que se estraçalham no seu exuberante traseiro. Os flocos que caem do céu são leves como espuma. A neve é cinematograficamente mágica, pictoricamente eterna, dramaturgicamente sintética. Se o filme de Pasolini se chamasse “O que é a neve” ao invés de “O que são as nuvens”, Totó teria respondido igualmente a Ninetto Davoli a sua pergunta “O que é a neve?”– uma desmesurada maravilhosa beleza da Criação. Bem, rev(f)erências à parte, destacada da representação artística, a neve palpável merece o seu lugar na minha mitologia pessoal. Se Guido não me tivesse despertado, dificilmente eu poderia ressignificar a experiência com o gelo. A bola de neve lançada no casaco, parece uma lesma grudada que lentamente desce, desce, desce, deixando impresso atrás de si o seu trajeto molhado.
domingo, 7 de fevereiro de 2010
chá sem bolachas
Um dia de primavera sem sol uma mulher com um belíssimo nome grego estava parada à janela da cozinha olhando lá fora a neblina que deixava a paisagem levemente imersa em um copo de leite. Estava quase melancólica quando escutou a campainha tocar. Ainda que fosse manhã cedo e não esperasse ninguém, decidiu abrir a porta após constatar através do visor que não conhecia aquela pessoa. Era uma dona de certa idade que lhe sorria com cabelos tingidos de loiro. “Que perfume de camomila”, comentou, assim que colocou o nariz dentro da sua casa. “É, deixei a chaleira acesa no fogo”. Em silêncio, as duas se sentaram à mesa da cozinha, e a loira adocicava com aspartame o chá na xícara. “Eu estava passando por aqui e pensei: por quê não?!”. Restaram outro tempo em silêncio. A mulher com o nome grego ofereceu-lhe biscoitos caseiros, mas a loira gentilmente rejeitou por causa da dieta, da pressão alta e do colesterol. No sofá da sala escutaram música lírica: “Puccini... esplêndido!”, diziam concomitantemente. E repartiram pedaços de vozes, memórias, fragmentos desconexos, como se costurassem juntas uma colcha de retalhos para decorar o pavimento de lenho. Até que a senhora, já de pé com a bolsa à tira colo, atribuiu às vidas um denominador comum, comunicando-lhe que eram filhas do mesmo maestro de orquestra, que as suas respectivas mães não se conheceram em vida, e que não à toa uma era soprano e a outra, contralto. Emocionada com a revelação da desconhecida-conhecida que agora era também a sua irmã, a mulher não teve tempo para sentir. A loira se despediu ligeira – tinha o neto à saída da escola. E enquanto uma abria a porta à outra, e a outra acariciava a face da uma, combinaram de se rever em alguma outra ocasião. Da janela da cozinha, a mulher com um belíssimo nome grego observou a irmã que atravessava a neblina como se entrasse em um copo de leite. Era ainda primavera.
(Imagem: Mulher ao espelho, Pablo Picasso, 1932)
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