Na vida só tinha o nome de batismo, mais nada.
Maria de Lourdes, batizada em Glória e sob a
custódia da Santíssima Trindade. Mas a menina não tinha talento para o
cristianismo. Gostava de fazer maldades, tinha o hábito de maltratar animais.
Assim, depenou um pintinho recém-nascido, cortou com uma tesoura a barriga do
gato da vizinha, estourou a cabeça de um cachorro de rua com um paralelepípedo
e arremessava diariamente o jabuti da avó contra a parede do jardim, para ver
os caquinhos do casco se multiplicarem. Maria de Lourdes cresceu, a avó morreu
de morte morrida e a mãe de morte matada: envenenada pela filha que, em seguida,
deu-se um tiro no meio da cara. Seu nome continuou uma incógnita e um
contrassenso. Só restou sua lápide: Maria de Lourdes, sem assinatura, sem nada, na metade do caminho.
*Imagem: Vampire, Edvar Munch, 1893.
sábado, 15 de outubro de 2016
quinta-feira, 6 de outubro de 2016
O pianista
Quando ele encontrou seu pai
biológico foi um verdadeiro choque: dono de uma antiga relojoaria no Ipiranga,
é um homem robusto, já nos seus setenta anos, vulgar com seu charuto. De origem
russa, vive sobre uma cadeira de rodas após o acidente de carro. Não tinham
muito o que dizer um ao outro pois sequer conviveram nos seus 30 anos de vida.
Mauro soube que era adotado no dia do funeral de seu pai adotivo. Ele era
japonês e Mauro nunca soube perceber que semelhanças não haviam entre eles, mas
foi levando a vida tocando piano, e Bach, Beethoven, Satie e Mozzart o levavam
a outras percepções. A mãe, idosa, resolveu lhe contar sua origem. Mauro, até
hoje renega seus irmãos e mãe biológica, que o perseguiram pela vida inteira. É
sua opção, para ele tudo isso é mentira, blasfêmia, aquela verdade que tem um preço alto para ser real. Pão
ou pães é questão de opiniães, diria Riobaldo, de “O Grande Sertão: Veredas”.
*Imagem: Circle in a Circle, Kandinsky, 1923.
sábado, 24 de setembro de 2016
Sombras
Dona Margarida abre a janela do seu quarto - é manhã de sol. A senhora sempre gostou de
manhãs assim, de invernos. É uma pena que o edifício fora construído bem ali,
em frente à sua casa. Durante cinquenta e quatro invernos o sol bateu em sua
janela para despertá-la. Este será o primeiro inverno que Dona Margarida terá que
acordar por si só: o sol está barrado pelo prédio.
Nossa! Nove horas! Novamente
atrasada.
Durante cinqüenta e quatro
invernos, Dona Margarida acordou pontualmente às sete. Desde a construção do
edifício a sua rotina mudou e está aborrecida com isso. Após abrir a janela, a
senhora se põe a chorar: é saudade do sol, saudade dos pais que deixou em Minas
Gerais, saudade da vida que não teve nesses oitenta e seis anos.
Quando decidiu se mudar
para São Paulo, Margarida tinha cinqüenta mil cruzeiros e o magistério recém
concluído. Na nova cidade trabalhou como garçonete, dama de companhia,
balconista de loja. Aposentou-se como professora primária da rede pública.
Morou no Bexiga, no Brás, no Parque D. Pedro, até que conseguiu, depois de
muito economizar, comprar uma casa no bairro do Mandaqui. É térrea e batia sol
o dia inteiro, mas com a construção do edifício a casa se tornou mais escura e úmida.
Quando moça, ainda morando
no sítio com os pais, Margarida se apaixonou por um rapaz que conheceu na missa
de domingo. Naquela época era comum os jovens apaixonados trocarem cartas,
escreverem poemas de amor com caneta de tinteiro. A paixão era escrita, chegava
dentro de um envelope, passava por debaixo da porta ou por entre as persianas
da janela do quarto. Certo dia, a correspondência de Marcelo não chegou à sua
casa e Margarida percebeu que não mais chegaria. Assim foi com a de João, com a
de Henrique e com a de Miguel, estes em São Paulo.
Dona Margarida chora,
debruçada na janela que acabou de abrir. É saudade do sol, saudade do Marcelo,
do João, do Henrique e do Miguel.
Mindinho, o gato, passa
por entre suas pernas, pedindo-lhe comida.
Nossa! Dez horas!
Novamente atrasada para alimentar o gato.
Toco, o cachorro, espera
pela dona para passear na rua. Dona Margarida ainda terá que ir à quitanda do
Sr. Manuel: são às quartas-feiras que chegam as laranjas limas. E depois terá
que passar no açougue para comprar a mistura do almoço.
Nossa! Onze horas! O vaso
de violetas cor de rosas aguarda ser regado.
Desde a construção do
edifício o sol não bate mais na janela do quarto da Dona Margarida. O vaso de
violetas, que há anos foi colocado no parapeito, encontra-se seco e maltratado.
Desde a construção do edifício Dona Margarida não regou mais suas violetas.
Todos os dias a senhora
chora debruçada em sua janela. É saudade. Saudade do sol. Saudade da vida que
não teve.
*Imagem: Four Trees, Egon Schiele, 1915.
*Imagem: Four Trees, Egon Schiele, 1915.
sábado, 17 de setembro de 2016
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