quinta-feira, 28 de julho de 2016

Quando do amor


Ela foi pega pela desmarginação no meio da rua. Ao seu redor, objetos e pessoas perdiam as margens e tudo se fundia numa matéria crua. Os sons ficavam mais nítidos e dava a impressão de ver o mundo correr em câmera lenta. A desmarginação, como ela denomina o fenômeno, vem-lhe quando menos espera. Em geral, quando está obcecada com o amor não correspondido por Júlio. Toma a forma de desespero engarrafado que ela engole em conta gotas. Uma árvore que tomba seca, retorcida. A borboleta que é arrastada pelo vento. O pássaro que se descobre sem asas no meio do voo. A desmarginação a tomou pelo braço e a conduziu por lugares quiméricos. 
Quando a encontrei estava nua, no ângulo do muro pichado. Havia tirado a roupa pelo calor excessivo e seu olhar era de bronze. A chuva azul de uma manhã de primavera clareava as formas ignotas de seu corpo frágil que se fundiam à matéria bruta do viver. Júlio não a ama e ela padece. Invisível, insolúvel, cindida. A sua dor peregrina busca alguma forma que torne plausível a própria existência.   

*Imagem: Crying Woman, Pablo Picasso, 1937.

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