sexta-feira, 1 de julho de 2016

Menino

Ele era ainda um pintinho quando o pai o bicou até quase a morte. Vó foi quem botou os intestinos da criatura pra dentro e costurou tudo com linha e agulha. Ele sobreviveu. Foi crescendo até virar frangote. Menino. Este era seu nome. Vivia solto no quintal, longe do pai que reinava austero no galinheiro. Menino, com seu canto desafinado e comprido, ciscava de lá pra cá, comia na mão das pessoas e recebia cafuné na cabeça: era dócil e domesticado. Talvez nutrisse uma profunda gratidão pela sobrevivência que lhe fora conferida graças à vó.
Com o tempo, vó foi ficando doente e morreu. Mãe, triste até a alma, não suportava mais o canto do Menino pois lhe fazia recordar vó. Decidiu se desfazer dele. O carroceiro que passava semanalmente na casa para retirar lixo reciclável manifestou interesse em adota-lo, dizendo que teria companhia em suas andanças.
O dia da despedida foi na semana seguinte: Menino, no colo de mãe, era acariciado pelas mãos dos filhos que, abatidos, lastimavam a sua partida. De repente, Menino derramou uma lágrima que escorreu pelo braço de mãe. Ela deu floral pra ele se acalmar. O carroceiro o levou. Os filhos choraram de pesar e mãe, firme, estava convencida de ter feito o justo.
Quando o carroceiro passou na outra semana mãe perguntou sobre Menino e o homem disse que a galinhada foi boa. Mãe ficou perplexa: talvez tenha errado em sua decisão, mas era certo que não podia conviver com o canto dele. No mais, como poderia imaginar o seu destino? Coração do outro é terra estrangeira. Mãe entregou o lixo reciclável para o carroceiro e fechou o portão. Nunca contaria aos filhos sobre Menino. Menino desajeitado, canto descompassado e comprido que fazia recordar vó. Menino doce, Menino triste, Menino morto. Ôh esse Menino.

*imagem: O Galo, Marc Chagall.

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