terça-feira, 29 de abril de 2008
Amor de passarinho
A velhinha tricotava no banco do parque com o seu radinho de pilha ligado quando avistou um passarinho distraído:
- Ô passarinho...psi psi... vem aqui vem...
Ela jogou um pedacinho de pão pro passarinho que se avizinhou. Fizeram amizade.
Até que o radinho da velhinha anunciou a chegada de uma frente fria no final de semana, e o passarinho, preocupado, roubou o novelo de lã da senhora e voou às pressas para o ninho.
Ficaram de mal...
(Imagem: Mujer, Pájaro y Estrella. Joan Miró, 1942)
sábado, 26 de abril de 2008
Triste ironia
O aniversário de 63 anos da Libertação da Itália do domínio nazi-fascista foi comemorado neste 25 de abril em traje inédito. Pela primeira vez na história do país a data assistiu ao Parlamento em seu momento histórico mais dramático: ausência absoluta de qualquer representação da esquerda - que na Resistência ao nazi-fascismo encontra um de seus valores fundadores. ( Na última eleição não houve sequer um candidato da coligação de esquerda eleito pelo povo...)
Na Piazza del Campidoglio algumas bandeiras vermelhas balançaram com o sopro da direita que importunamente tentou apagar as chamas remanescentes das velas comunistas do bolo itálico. Ainda assim, foi dia de festa...
quinta-feira, 24 de abril de 2008
Olé toro!
Tambores, clarinetes, trompetes. A banda começa a tocar, inaugurando o desfile dos personagens. Cada função uma fantasia diversa: estampas, tecidos, chapéus, fitas de pano, bastões e lanças. Tudo muito colorido, folclórico, uma mistura de comédia dell’arte com arte circense em um contexto de desfile oficial-nacional. Todos caminham em círculo: a Plaza de Toros em Madrid tem a forma do Coliseu Romano
Quando o touro entra na arena parece um cachorro correndo atrás da bola. Ele procura os panos rosa choque que os senhores enfeitados lhe exibem de diversos pontos e corre atrás para pegar. Que estilo, que porte, esbelto, suntuoso. Às vezes marchando, às vezes correndo. Olha para um lado. Olha para o outro
- Olé toro!
Um homem vem vindo cavalgando – pocotó, pocotó, pocotó. O cavalo embalado em espumas, panos bordados e acessórios dourados para se proteger dos chifres do rival
O cavaleiro enfia a lança no cupim do touro
- Olé toro!
E mais uma!
- Olé toro!
O touro fica parado tentando entender as regras do jogo
Vem vindo o homem com a roupa bufa de estampa xadrez! Vem vindo fazendo graça e malabarismos com bastões coloridos cheios de fitas. Parece o bobo da corte que tanto humor trouxe à nobreza nos tempos da monarquia. Ele se aproxima por detrás do touro distraído e zás! Joga-lhe sobre as costas os bastões cujos ganchos fincados fazem o animal sangrar
- Olé toro!
As fitas coloridas dos bastões encravados balançam com o vento: azul, vermelho, amarelo, branco. O touro pensativo parece ainda não ter entendido que a dinâmica do duelo é desigual
E vem vindo o toureiro! O toureiro em sua elegância principesca!
- Que belo homem, magro, ereto em seu traje todo bordado de dourado. Vem caminhando... como se vira, como finaliza o passo.... o movimento... Tem a postura de um bailarino este toureiro
O pano vermelho! O touro vermelho: mudou de cor!
- ¿Es rabia, señor?
- No hija, es dolor...
O sangue do touro mancha a arena enquanto o toureiro lhe balança o pano - os vermelhos oscilantes se misturam. A tourada é ruiva! A tourada é ruiva!
- Olé toro!
Os dois dançam na Plaza de Toros de las Ventas em Madrid
O bicho parece estar cansado, renunciando a tentativa de entender as normas do combate
- O touro está desistindo! O touro está desistindo!
O bailarino agita novamente o pano vermelho, e na outra mão segura a lança prateada, brilhante. E tudo está brilhando, girando, zumbindo na cabeça do touro: o sol, o vento, a areia e a espada do cavaleiro medieval
- Venga toro!
O último passo do baile termina com a lança que atravessa o animal: das costas atinge o coração. Silêncio. Ele fica parado, ponderando tristemente, com cara de cachorro que tenta entender a dor de barriga. E então gira, desgira, rodopia e cai, vencido
- Olé toro!
O bailarino se curva para agradecer o aplauso tímido do homem do século vinte e um. O touro permanece curvado no chão e faz pouco caso aos agradecimentos. Dizem que eles são assim mesmo, arrogantes, birrentos, e não sabem lidar com derrotas...
A banda recomeça a sonar. Tambores, clarinetes e trompetes. Pocotó, pocotó, pocotó. Os cavalos arrastam o corpo amarrado, enquanto os homens de verde cobrem com areia o vermelho pelo chão. Como um carimbo o desenho do bicho caído ainda fica gravado na arena
- ¿Qué se passa, hija?¿Estás a llorar?
- Estoy intentando olvidarme, señor...
Na tourada que vi em Madrid espectadores se levantaram antes do fim. A maioria era turista e de espanhóis mesmo, só os senhores mais tradicionais. O Olé atravessou solitário o Coliseu Espanhol lembrando-nos de que o homem se transformou e que a tradição das “corridas” já tem prazo de validade
Estou tentando esquecer a tourada que vi em Madrid
O touro é um cachorro grande com chifres que corre atrás do pano pensando que é uma bola
quarta-feira, 16 de abril de 2008
Lamento de sinistra
Roma amanheceu cinzenta
Estranho, se é ainda primavera...
Berlusconi venceu a eleição
E deixou a cidade cinza
Uma garoa fina caiu a tarde toda
Limpando a tristeza da primavera que já nasceu morta
Lamento di sinistra
Roma si è svegliata grigia
Strano perché é ancora primavera...
Berlusconi ha vinto l'elezione
E ha lasciato la città grigia
C'è stata una pioggerella tutto il pomeriggio
Che puliva la tristezza della primavera che ormai è nata morta
domingo, 13 de abril de 2008
Sobre cinema e porcos
Se verdade ou imitação
Fato é que o cinema me desestabiliza
E o exercício analítico-racional tão indispensável ao meu ofício
Existe em mim como aptidão, ternura, mas também necessidade - a necessidade de me proteger da emoção do cinema
Nas cenas de dor, tortura e morte
Preciso encontrar na tela os sinais da representação (e, portanto do que é falso naquilo que vejo)
Para que minha angústia seja acalmada
E a experiência de fruição melhor dimensionada
Por quê sofrer, afinal?
Sou assim desde criança: acredito e vivo em diversos níveis de realidade, utilizando como meio e suporte a arte, a política, a filosofia e a religião
E preciso sempre me proteger do suspense e da dor do cinema
Vigiando na tela a respiração do ator
que interpreta a personagem assassinada
Analisando o vermelho artificial do sangue irrompido
Decompondo o organismo formal das cenas de perseguição
Tento desconstruir o cinema para me proteger da emoção do cinema
Fracassei
"A árvore dos tamancos” ,filme de Ermanno Olmi ambientado na região campesina italiana de Bergamo:
Na cena em que as personagens matam um ganso
Consegui ver que ele era feito de pano
Era real no início
E depois virou de pano para que lhe cortassem a cabeça
Mas na cena do porco não consegui ver nada
Ele morreu gritando, desesperado
A faca atravessada no peito
O seu choro não era falso
A cor do sangue não era falsa
A dor do porco não era falsa
E desde que vi o assassinato do porco no filme de Ermanno Olmi
Não consigo comer carne suína
Porque o meu sofrimento também foi real
Fato é que o cinema me desestabiliza
E o exercício analítico-racional tão indispensável ao meu ofício
Existe em mim como aptidão, ternura, mas também necessidade - a necessidade de me proteger da emoção do cinema
Nas cenas de dor, tortura e morte
Preciso encontrar na tela os sinais da representação (e, portanto do que é falso naquilo que vejo)
Para que minha angústia seja acalmada
E a experiência de fruição melhor dimensionada
Por quê sofrer, afinal?
Sou assim desde criança: acredito e vivo em diversos níveis de realidade, utilizando como meio e suporte a arte, a política, a filosofia e a religião
E preciso sempre me proteger do suspense e da dor do cinema
Vigiando na tela a respiração do ator
que interpreta a personagem assassinada
Analisando o vermelho artificial do sangue irrompido
Decompondo o organismo formal das cenas de perseguição
Tento desconstruir o cinema para me proteger da emoção do cinema
Fracassei
"A árvore dos tamancos” ,filme de Ermanno Olmi ambientado na região campesina italiana de Bergamo:
Na cena em que as personagens matam um ganso
Consegui ver que ele era feito de pano
Era real no início
E depois virou de pano para que lhe cortassem a cabeça
Mas na cena do porco não consegui ver nada
Ele morreu gritando, desesperado
A faca atravessada no peito
O seu choro não era falso
A cor do sangue não era falsa
A dor do porco não era falsa
E desde que vi o assassinato do porco no filme de Ermanno Olmi
Não consigo comer carne suína
Porque o meu sofrimento também foi real
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