quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Qual a cor da velhice?




Ciao Fiorella! Come stai bella?

Há quanto tempo não nos falamos... Resolvi te escrever porque me recordei de você enquanto revia as fotografias do casamento de Raffaello. Cá entre nós, você está linda naquele vestido azul e te confesso que demorei 68 anos para compreender isso. Tem uma foto em que você está ao lado de Michele com a cabeça baixa, como se estivesse conferindo se o seu sapato estava justo, ou sujo, não sei, e que vestido lindo o seu, que caimento aquele tecido, e que tonalidade...

Cara, como estão todos por aí? Giuseppe, Andrea, Paolo? Mande lembranças a eles por mim.

Aqui as coisas estão bem, só não estão melhores porque a minha dor nas costas não permite que estejam. Madonna! Tem noites que não consigo pregar os olhos um minuto sequer. Ma va bene, 92 anos de idade pesam mesmo e apesar de tudo, minha lucidez ainda me permite existir.

O Quarticciolo tornou-se um bairro de idosos. As famílias que aqui moram utilizam o bairro como dormitório e de manhã cedo, pais e mães retomam as suas rotinas proletárias junto aos grandes centros romanos. Os jovens assim que começam a estudar se mudam para as zonas mais centralizadas e dividem apartamentos com os amigos da faculdade. Aqui restamos nós, a esperar as visitas de domingo.

O Centro dos Idosos (Centro Anziani del Quarticciolo) mudou de lugar, não é mais ali ao lado da igreja, agora é uma casa nova, grande, toda pintada de bege e com as janelas verdes. Fica ao lado do mercado de frutas, sabe, ali perto da praça? Pois é, com a mudança de ares o local está ficando cada vez mais freqüentado e as atividades, mais interessantes. Todas as tardes nos reunimos para jogar cartas, ouvir música, conversar. As quintas e sábados à noite realizamos bailes que costumam encher, são 150 a 200 idosos dançando liscio, tango, valsa, jazz e até música latino-americana. Está sendo ótimo porque vivemos nossa velhice com dignidade, com velocidade. Os dias passam mais rapidamente e tudo parece mais interessante, tão interessante quanto escapar das missas aos domingos.

No Centro Anziani do Quarticciolo diversas pessoas se apaixonam, casamentos acontecem, e alguns são simplesmente amantes que tem suas respectivas vidas, famìlias e cònjuges e se encontram no baile, escondidos dos familiares, para namorar. Lembra-se de Piero e Grazia? Se casaram há um ano e ambos eram viúvos há mais de 10. Sergio e Ottavia também, fizeram até um jantar de celebração com os filhos e netos. Eu já conhecia Donato do antigo Centro, mas nosso relacionamento só foi acontecer de verdade nesta nova sede. Uma noite, depois do baile, ele me acompanhou até em casa e se declarou a mim, dizendo estar apaixonado. E eu, que sentia o mesmo, disse que aceitava a sua proposta de casamento. Um casamento diferente, inusitado, eu havia 89 anos e ele 87, todos os dois viúvos, mas de qualquer forma, uma ocasião da non perdere. Optamos por morar em casas separadas porque, afinal, quando somos jovens aprendemos a conviver com os defeitos do companheiro, mas na velhice os defeitos já estão tão marcados que a convivência beira o insuportável. De qualquer forma, é uma forma diferente de amor, e de matrimònio. É uma escolha importante esta de definir a pessoa que estará ao seu lado nestes momentos finais, mas também é eleger um sofrimento a mais para suportar: a insegurança de pensar diariamente quem partirá primeiro, e tudo é muito provisório neste sentido. Eu e Donato nos falamos todas as manhãs por telefone, às tardes ele me busca para irmos ao Centro Anziani, e às noites de quinta e sábado bailamos. Donato é muito gentil, tem os olhos azuis e uma boina de comunista. As senhoras do bairro sentem inveja do amor dele por mim. E eu, sinto ciúmes quando no baile ele tira outra mulher para dançar.

Esta semana um grupo de jovens estudantes de cinema do Centro Sperimentale apareceu no nosso baile em busca de histórias de amor. Disseram que estão fazendo um documentário sobre a memória do bairro para a faculdade. Eu lhes contei sobre minha vida, sobre meus filhos, netos, bisnetos e sobre Donato. Donato lhes contou sobre a guerra, sobre a ocupação nazista a Roma, sobre seus filhos, seus netos, seus bisnetos e também sobre mim. Os garotos filmaram tudo: a entrevista, o baile, os sapatos, os abraços, e ainda nos perguntaram sobre sexo. Veja se pode, essa juventude de hoje não tem vergonha na cara mesmo, e me esquivei da pergunta como me esquivo diariamente dos meus filhos pedindo dinheiro emprestado. Bem, os garotos disseram que retornarão para nos mostrar o filme pronto. Já pensou que maravilha se um dia passar na televisão?

Cara, termino por aqui senão a carta ficará muito longa. Me escreva quando puder. Estou te mandando também algumas fotografias do nosso baile para que veja como é animado, e uma foto minha com Donato, para que conheça o mais recente marido desta sua velha amiga. Ecco, bota velha nisso.

Um abraço sincero,

Maria Massara

Um comentário:

jeanecroche disse...

Amei ler, adoro dançar, felicidades