Sabe-se que os italianos em geral gostam de comer bem e em grande quantidade. O romano é um caso especial - estende seu apetite até sobre o vocabulário, devorando as sílabas e palavras da própria gramática. Dessa forma, uma oração como “Che cosa sta facendo?”, se transforma subitamente em “Ch’ sta a fà?”, “Cosa sta dicendo” em “Ch’sta a dì” e “Andiamo a mangiare” em “annamo a magnà”. O dialeto romanesco é assim, faminto, devora tudo, vogais, verbos, objetos diretos e indiretos, substantivos, todas as palavras que Mussolini, durante seu regime fascista nos anos 30, impôs aos italianos como idioma oficial, autoritário, para unificar a nação e aniquilar as línguas regionais tradicionais.
Ora. Sono bravi questi romani! Mangiate ragazzi, subito, tutte le parole, finchè non ci sia più nessuna! Ricostruiamo l’idioma italiano! Ricreiamolo, dai, più libero! Fuori la destra autoritaria ed americanizzata! Fuori Berlusconi-Mussolini. Buon appetito a tutti quanti! – é como se de repente eu escutasse o eco da voz inesistente de Pasolini, assim, enérgica e apaixonada. Ele que em pleno fascismo publicou "Poesie a Casarsa", um livro de poesias em dialeto friuliano
(língua falada na região camponesa de Friuli), numa clara atitude em defesa da livre expressão e de resistência ao projeto mussoliniano de homogeneização da massa. È como se eu ouvisse o seu grito isolado atravessando o séc. vinte e um....
domingo, 30 de março de 2008
quarta-feira, 12 de março de 2008
Arroz, Feijão e Doces Bárbaros!
Acredito que um papel fundamental do forasteiro em terra estrangeira é aquele de portar a sua própria cultura a esta sociedade. Apresentá-la. Desesteriotipá-la. Estimá-la. Encorajá-la. Repensá-la a partir dos contrastes culturais e históricos que convive diariamente na experiência imigrante, e depois, enriquecendo-se, também a enriquece, porque lhe pode acrescentar, quando retorna à sua Nação, seus conhecimentos adquiridos no exterior. Foi com este sentimento que cheguei a Roma, portando comigo 20 DVDs brasileiros, além de músicas, temperos, feijão, boldo, partituras de chorinho para piano e idéias. O portar a cultura deveria ser o além do natural (a pessoa em si já é a expressão da sua cultura original), e alcançar o patamar de consciência da responsabilidade em ser o microcosmo de um país, um representante de sua terra-mãe.
Há quem rejeite sua origem, se envergonhe dela, não se identifique, ou que não sente necessidade de portá-la, ou melhor, pronunciá-la durante sua experiência no exterior. Legítimo, por que não? Cada um sabe onde o calo aperta. Mas como o meu sapato é folgado e eu não tenho calos, assumi o papel de ragazza-embaixadora-por-
vocação-e-paixão da cultura brasileira. Gosto de falar do meu país, de aniquilar nossos estereótipos, de exibir filmes nacionais, comentá-los, indicar nomes de escritores brasileiros que admiro, de colocar CDs brasileiros para tocar, enfim, não à toa meus amigos que não conheciam nada, ou quase nada de Brasil, me pedem para gravar CDs de músicas para eles, DVDs brasileiros, querem conversar sobre o cinema nacional, sobre “Tropa de Elite” que ganhou Berlim, acessam sites que indico, me dizem que leram no jornal que está tendo uma epidemia de febre amarela em São Paulo, perguntam o que eu acho de Chávez e da América Latina, compram traduções de Clarice Lispector, me perguntam como se diz determinada expressão em português, e um colega apareceu dia desses com um manual de português pedindo para eu ensiná-lo o “brasiliano”.
Quando tem amor, verdade e liberdade eu fico feliz.
Na última quarta-feira realizei um jantar brasileiro em casa. Na véspera não consegui dormir direito, tamanha era a ansiedade, o sentimento de responsabilidade: seria a primeira vez que meus amigos comeriam uma comida brasileira. E se eles não gostarem? E se der dor de barriga neles? Ai meu Deus, meu Brasil! Mas a quarta-feira amanheceu com sol. Depois da aula vim pra casa e cozinhei para 10 pessoas: feijão preto com bacon, arroz com alecrim, salada e frango cozido com batatas - colorau, açafrão, coentro e pimenta do reino. Fazia tempo que não sentia o perfume da comida brasileira. Que alegria. Na sala, Clara Nunes sambava! Na cozinha eu dançava com as panelas, tudo era diversão. Esperemos agora para ver o que meus colegas dirão.
Nove horas da noite. Começaram a chegar. Cervejinha, salaminho, azeitonas e provolone abriam alas ao apetite. E a bossa-nova rolando solta no saloto. Bate-Papo. Depois cheguei com as panelas. Perfume. Hummmm. Açafrão, coentro, feijão. Mangiare!!! Silêncio. Todos comiam com tanto prazer que nos primeiros minutos não podiam sequer falar. Cartola sambava na sala, sozinho. Os elogios foram surgindo: “Madonna! Che saporito!”, “Voglio andare in Brasile!”, “Mamma Mia, buonissimo!”. E aos poucos voltaram a falar, conversar, mas sempre resgatando o motivo do encontro: “Che bel mangiare! Grazie!”, “Madonna, com’é diverso, che buono!”, diziam, repetiam o verbo e o prato, interrompiam o discurso de alguém. Eu, àquela altura, estava nas nuvens, satisfeita, tranqüila, contente que haviam gostado da comida brasileira. E evidentemente, estava feliz por mim, de comer eu mesma a comida do meu país, depois de dois meses e meio de pasta, pasta e mais pasta.
Exibi trechos do show dos Doces Bárbaros (realizado em ocasião da comemoração de 25 anos do primeiro show do grupo) e de Ney Matogrosso (um show enérgico, com repertórios de Rita Lee, Cazuza, Pedro Luís, etc). Tenho um projetor em casa e os exibi grandes, na parede, o som alto. A exceção de Caetano Veloso que é muito conhecido por aqui, e um pouco a Gal Costa, dos demais não se sabia a existência, ou então, já se tinha ouvido falar muito pouco. Resultado: delìrio. Sucesso – de público e de crítica! Ney Matogrosso com toda a sua sensualidade transgressiva e colorada; Os Doces Bárbaros com todo o mito de Caetano, Gil, Gal e Bethânia, as cores, os afoxés, os afetos. Parênteses: não significa que me esqueci que Caetano é amiguinho do Fernando Henrique Boca de Pudim! Anzi, fiz questão de sublinhar, para a surpresa da galera, a opção polìtica do baiano. Fecha parênteses. De todas as músicas-cenas, a que mais marcou a serata foi a lendária “Esotérico”, interpretada por Bethânia e Gal entre olhares ambíguos, enquanto Gil toca o violão e Caetano se debruça em seu ombro, num gesto de doce afetividade. O clímax. Aplausos. Alto-astral coinvolgente!
A noite prosseguiu com bate-papo. Jorge Ben dançava na sala e desta vez alguns italianos tentavam acompanhá-lo em seu swing. O jantar acabou tarde, quatro e meia da madrugada. E no dia seguinte, ninguém foi à aula da manhã. À tarde, o professor perguntou a razão das ausências matinais. E nada hesitantes meus colegas responderam: culpa da brasiliana professore! Do frango, do feijão e dos Doces Bárbaros!
“Com amor no coração, preparamos a invasão. Cheios de felicidade, entramos na cidade amada...” (“Os mais doces bárbaros”, Caetano Veloso).
terça-feira, 4 de março de 2008
As sete cores de Franco Zeffirelli
Na última terça-feira foi celebrada no Centro Sperimentale di Cinematografia a abertura do ano acadêmico. Um evento um pouco tardio, afinal, as aulas jà começaram hà quase dois meses, mas a razào desse atraso foi a crise política então instalada no país com a queda do governo Prodi.
Na cerimônia estavam presentes algumas figuras pùblicas significativas, tais quais Francesco Alberoni, presidente da Fundação Centro Sperimentale, Giuseppe Cereda, diretor da Scuola Nazionale di Cinema e Francesco Rutelli, atual ministro no Ministério per i Beni Culturali e provável próximo sindaco (prefeito) de Roma. Alguns ex-alunos que marcaram a história do cinema e da televisão italianas foram homenageados, recebendo, cada um deles, um diploma de reconhecimento e realizando um pequeno discurso para um auditório com cerca de 400 pessoas. Foram: Elli Parvo, atriz que marcou o cinema dos anos 40 e 50; Raffaela Carrà, atriz do cinema dos anos 60 que se transformou em uma das mais modernas showgirls da televisão italiana sendo considerada hoje uma diva; Arnoldo Foà, mítico ator italiano de origem judaica que possui no currìculo mais de 100 filmes e peças tatrais realizados desde os anos 30; Carlo Lizanni, grande nome do cinema neo-realista e político italiano e por fim, Franco Zeffirelli, diretor-pupilo de Luchino Visconti, que consolidou sua carreira nos Estados Unidos e realizou dentre tantas obras, o clàssico “Romeu e Julieta”, “A Paixào de Cristo” e “Irmào Sol, Irmà Lua”.
Franco Zeffirelli, em seu discurso, denunciou o isolamento que sofreu nos anos 60, quando iniciou sua carreira cinematográfica na Itália: “Eu fui expulso da Associação Italiana de Autores porque eu propunha outro tipo de cinema, diverso daquele que então era feito. Eu era contra o cinema político-ideológico e pornográfico, meu cinema era de poesia, um cinema que resgatava o princípio do amor e da pureza”. Depois de continuar a sua fala agressiva e um pouco ambígua, onde não se compreendia se elogiava ou ironizava diversas figuras da cena cinematográfica contemporânea, Zeffirelli abalou os alicerces do cerimonial tocando no assunto sexualidade. A origem deste desenlace foi a apresentação inicial de seu breve currículo feita pelo mestre de cerimônias, a qual em determinado momento dizia que este cineasta é antes de tudo um grande artista, que teve significativa atuação além do cinema, em outras duas linguagens artìsticas, o teatro e a ópera, e que, portanto, poderia se dizer que Zeffirelli é um apaixonado que possui 3 mulheres. E eis que Zeffirelli, nos momentos finais de seu discurso de agradecimento, resgatou esse comentário inicial do mestre de cerimônias para desestabilizar uma mesa composta por senhores sérios, aparentemente católicos, heterossexuais na cama e centro-direita na política, quando não direita total, digamos assim. “Eu gostaria de comentar que quando fui apresentado como um artista apaixonado que possui 3 mulheres, quem disse que são mulheres? É preciso deixar claro os seus sexos”. O público de jovens caiu na gargalhada e os senhores à mesa, e mesmo aqueles à platéia imergiram em um profundo constrangimento, mudando até a cor da cara. Vermelho. Silêncio. Zeffirelli prossegue: “O teatro é masculino. A ópera é feminina. E o cinema, tutti e due”. Mais risadas juvenis contrapesadas com o silêncio mumificado das meia e terceira idades cristãs. O cinema è bissexual! O cinema è bissexual!
Zeffirelli agradeceu e voltou ao seu lugar, acompanhado por aplausos calorosos. E foi assim que descobri que uma cerimônia formal de centro-destra pode ser abalada por piccolas questões de foro íntimo. E aprendi também que bicha em italiano é “frocio”.
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