sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Amirós


Como uma pessoa ecumênica que sou, ou seja, que estima e crê concomitantemente em diversos discursos religiosos por acreditar que estes sejam dialógicos e complementares entre si, negando, dessa forma, qualquer supremacia de um sobre o outro, vou contar uma experiência divertida que me aconteceu.

Em 2004 adquiri uma pintura mediúnica da qual gosto bastante, e que cumpre, digamos assim, a sua função curativa e energética: reequilibrar o humor e as emoções. É um quadro colorido composto por formas abstratas, pintado com giz de cera em papel cartão A3. O seu único problema, digamos assim, é ter sido assinado por Miró. Nada contra os espíritas kardecistas, mas certa mania de grandeza que muitos deles têm è da rompere i coglioni, per dire una espressione italiana. Por què muitos kardecistas se remetem freqüentemente a grandes nomes da humanidade, na arte, na filosofia e na política, para traçar o passado reencarnatório de um determinado espírito, ou justificar a autoria de determinada obra? Por què tantos espíritos são a reencarnação de Cleópatra, de Júlio César, de Nero, Napoleão, para dizer alguns nomes, e não de Mariazinha, José e Joana de tal? Por què quem assina os quadros mediúnicos são sempre Monet, Dalí, Miró, Renoir, Picasso, nomes conhecidos e banalizados pela burguesia consumista que sempre tem em suas salas de estar e consultòrios reproduções grotescas de suas obras, sendo que subitamente se reconhece que sequer os traços desses artistas as pinturas mediúnicas possuem? Enfim, a referência a nomes importantes registrados na história da arte e da humanidade podem significar uma mania de grandeza e até uma necessidade de credibilidade a qual recorre muitas pessoas que se auto denominam kardecistas. Esta é uma prática que faz com que eu sinceramente questione o espiritismo pequeno burguês que vem sendo praticado em muitos centros pelos quais eu passei no Brasil.

Mas voltando ao Miró que ficava na parede do meu quarto em São Paulo. O fato foi que queria trazer este quadro comigo para Roma, para colocá-lo no meu quarto caso eu necessitasse de sua energia terapêutica nos momentos de dificuldades. Mas aquela assinatura de Miró, Mamma Mia, che palle! Cada vez que eu a olhava simplesmente não ci poteva credere! E imaginei che casino que seria eu em Roma tendo que explicar aos meus amigos católicos que aquele quadro foi pintado em uma sessão mediúnica espírita, por um espírito que se diz chamar Miró, mas que nem eu mesma acreditava ser o real Miró dos livros de arte. O que? Espírito? O que é uma pintura mediúnica? A minha explicação começaria desde o princípio porque por aqui ninguém nunca ouviu falar em Kardec. Enfim, para poupar a fadiga, e para evitar a minha própria indignação diária ao ler a assinatura de Miró naquele papel cartão A3, eu simplesmente fiz um pequeno ajuste no quadro. Junto com uma amiga, pensamos uma saída: pegamos um giz de cera preto e zás, duas letras resolveram o impasse e a assinatura passou de Miró para AMIRÓS. Amirós! Agora sim! Nada mais me disturba, pelo contrário, arranjei um toque a mais de humor para imprimir sobre o quadro, colaborando, de alguma forma, com o efeito esperado de suas qualidades energético-curativas. E é isso o que importa, não é?

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Minha declaração de amor a Roma


(Família de bicicleta. Anahí Borges, 09.02.2008)


(Inverno colorido. Anahí Borges, 10.02.2008)


(A sedutora. Anahí Borges, 09.02.2008)


(Fahrenheit 451. Anahí Borges, 06.02.2008)


(Serenata contemporânea. Anahí Borges, 05.02.2008


(Senhores no Parco Appia Antica. Anahí Borges, 08.02.2008)


(O ditador. Anahí Borges, 09.02.2008)


(Stazione metro Cipro. Anahí Borges, 04.02.2008)


(Mulheres mortas. Anahí Borges, 10.02.2008)


(Azul. Anahí Borges, 07.02.2008)


(Do Circo Massimo. Anahí Borges, 06.02.2008)


(Final de filme. Anahí Borges, 10.02.2008)

PS - Para ver mais fotos clicar: 12 fotos para um pseudo-calendário romano)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

O sentimento do exìlio

Reflexòes sobre o exìlio, Edward Said

" Os nacionalismos dizem respeito a grupos, mas, num sentido muito agudo, o exìlio è uma solidào vivida fora do grupo... O exìlio, ao contràrio do nacionalismo, è fundamentalmente um estado de ser descontìnuo. Os exilados estào separados das raìzes, da terra natal, do passado ".

" O exilado sabe que, num mundo secular e contingente, as pàtrias sào sempre provisòrias...".

" Embora seja verdade que toda pessoa impedida a voltar para casa è um exilado, è possìvel fazer algumas distinçòes entre exilados, refugiados, expatriados e emigrados..."

" Ver o mundo inteiro como um terra estrangeira possibilita a originalidade da visào. A maioria das pessoas tem consciència de uma cultura, um cenàrio, um paìs; os exilados tèm consciència de ao pelo menos dois desses aspectos, e essa pluralidade de visòes dà origem a uma consciència de visòes simultàneas, uma consciència que è contrapontìstica. Para o exilado os hàbitos de vida, expressào ou atividade no novo ambiente ocorrem inevitavelmente contra o pano de fundo da memòria dessas coisas em outro ambiente. Assim, ambos os ambientes sào vìvidos, reais, ocorrem juntos como no contraponto."

"Nas palavras de Wallace Stevens, o exìlio è uma "mente de inverno" em que o phatos do verào e do outono, assim como o potencial da primavera, estào por perto mas sào inatingìveis".

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Romantismo ingênuo

A gentileza dos homens italianos é culturalmente enraizada, se revela em todas as faixas etárias e nas situações mais prosaicas possíveis: no refeitório da faculdade pode esperar que um seu amigo freqüentemente se oferece para levar a sua bandeja, ao caminhar pelos corredores você sempre terá preferência para passar por qualquer porta pois este seu mesmo amigo, caminhando ao seu lado, quando não te abre a porta , certamente pára até que você passe primeiro. Ou então, se você está na fila da cantina para pegar um café, na primeira distração o balconista acaba te entregando dois cafés porque o primeiro o seu amigo já pagou para você.

E então li um aviso aos passageiros dentro do trem: “Deixe os assentos livres para que se sentem os inválidos, as pessoas idosas e as mulheres”.

Machismo mascarado, desavergonhado! Um processo histórico católico e conservador. A sociedade de apenas um sobrenome: o paterno. O valor sagrado de família e do casamento heterossexual monogâmico. Grande semelhança com os valores sociais brasileiros. Costumo dizer que nossa sociedade brasileira antes de ser cordial, é machista. Aliás, segundo uma pesquisa norte-americana sobre relações de gênero nos países (li sobre esta pesquisa no livro “O Novo Cinema Iraniano”, de Alessandra Meleiro), dentro de uma escala 0 a 100% de desigualdade sexual, o Brasil se situa em 55%. Que vergonha! Mas, voltando ao anúncio no trem: este serviu para estimular em mim a reflexão sobre as muitas facetas do pseudo-gesto elegante que uma sociedade machista oferece às mulheres. E mais dissimulado do que ele próprio, está a emoção ingênua que nós mulheres manifestamos diante de um gesto elegante de machismo. Estou falando de raízes culturais intrínsecas em povos conservadores. Complicada esta questão, ainda que as relaçòes de gênero estejam se modificando, lentamente.

E foi assim que descobri a ontologia da palavra cavalheirismo.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Qual a cor da velhice?




Ciao Fiorella! Come stai bella?

Há quanto tempo não nos falamos... Resolvi te escrever porque me recordei de você enquanto revia as fotografias do casamento de Raffaello. Cá entre nós, você está linda naquele vestido azul e te confesso que demorei 68 anos para compreender isso. Tem uma foto em que você está ao lado de Michele com a cabeça baixa, como se estivesse conferindo se o seu sapato estava justo, ou sujo, não sei, e que vestido lindo o seu, que caimento aquele tecido, e que tonalidade...

Cara, como estão todos por aí? Giuseppe, Andrea, Paolo? Mande lembranças a eles por mim.

Aqui as coisas estão bem, só não estão melhores porque a minha dor nas costas não permite que estejam. Madonna! Tem noites que não consigo pregar os olhos um minuto sequer. Ma va bene, 92 anos de idade pesam mesmo e apesar de tudo, minha lucidez ainda me permite existir.

O Quarticciolo tornou-se um bairro de idosos. As famílias que aqui moram utilizam o bairro como dormitório e de manhã cedo, pais e mães retomam as suas rotinas proletárias junto aos grandes centros romanos. Os jovens assim que começam a estudar se mudam para as zonas mais centralizadas e dividem apartamentos com os amigos da faculdade. Aqui restamos nós, a esperar as visitas de domingo.

O Centro dos Idosos (Centro Anziani del Quarticciolo) mudou de lugar, não é mais ali ao lado da igreja, agora é uma casa nova, grande, toda pintada de bege e com as janelas verdes. Fica ao lado do mercado de frutas, sabe, ali perto da praça? Pois é, com a mudança de ares o local está ficando cada vez mais freqüentado e as atividades, mais interessantes. Todas as tardes nos reunimos para jogar cartas, ouvir música, conversar. As quintas e sábados à noite realizamos bailes que costumam encher, são 150 a 200 idosos dançando liscio, tango, valsa, jazz e até música latino-americana. Está sendo ótimo porque vivemos nossa velhice com dignidade, com velocidade. Os dias passam mais rapidamente e tudo parece mais interessante, tão interessante quanto escapar das missas aos domingos.

No Centro Anziani do Quarticciolo diversas pessoas se apaixonam, casamentos acontecem, e alguns são simplesmente amantes que tem suas respectivas vidas, famìlias e cònjuges e se encontram no baile, escondidos dos familiares, para namorar. Lembra-se de Piero e Grazia? Se casaram há um ano e ambos eram viúvos há mais de 10. Sergio e Ottavia também, fizeram até um jantar de celebração com os filhos e netos. Eu já conhecia Donato do antigo Centro, mas nosso relacionamento só foi acontecer de verdade nesta nova sede. Uma noite, depois do baile, ele me acompanhou até em casa e se declarou a mim, dizendo estar apaixonado. E eu, que sentia o mesmo, disse que aceitava a sua proposta de casamento. Um casamento diferente, inusitado, eu havia 89 anos e ele 87, todos os dois viúvos, mas de qualquer forma, uma ocasião da non perdere. Optamos por morar em casas separadas porque, afinal, quando somos jovens aprendemos a conviver com os defeitos do companheiro, mas na velhice os defeitos já estão tão marcados que a convivência beira o insuportável. De qualquer forma, é uma forma diferente de amor, e de matrimònio. É uma escolha importante esta de definir a pessoa que estará ao seu lado nestes momentos finais, mas também é eleger um sofrimento a mais para suportar: a insegurança de pensar diariamente quem partirá primeiro, e tudo é muito provisório neste sentido. Eu e Donato nos falamos todas as manhãs por telefone, às tardes ele me busca para irmos ao Centro Anziani, e às noites de quinta e sábado bailamos. Donato é muito gentil, tem os olhos azuis e uma boina de comunista. As senhoras do bairro sentem inveja do amor dele por mim. E eu, sinto ciúmes quando no baile ele tira outra mulher para dançar.

Esta semana um grupo de jovens estudantes de cinema do Centro Sperimentale apareceu no nosso baile em busca de histórias de amor. Disseram que estão fazendo um documentário sobre a memória do bairro para a faculdade. Eu lhes contei sobre minha vida, sobre meus filhos, netos, bisnetos e sobre Donato. Donato lhes contou sobre a guerra, sobre a ocupação nazista a Roma, sobre seus filhos, seus netos, seus bisnetos e também sobre mim. Os garotos filmaram tudo: a entrevista, o baile, os sapatos, os abraços, e ainda nos perguntaram sobre sexo. Veja se pode, essa juventude de hoje não tem vergonha na cara mesmo, e me esquivei da pergunta como me esquivo diariamente dos meus filhos pedindo dinheiro emprestado. Bem, os garotos disseram que retornarão para nos mostrar o filme pronto. Já pensou que maravilha se um dia passar na televisão?

Cara, termino por aqui senão a carta ficará muito longa. Me escreva quando puder. Estou te mandando também algumas fotografias do nosso baile para que veja como é animado, e uma foto minha com Donato, para que conheça o mais recente marido desta sua velha amiga. Ecco, bota velha nisso.

Um abraço sincero,

Maria Massara

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

As lágrimas de Ermanno Olmi



Hoje assisti à obra-prima de Ermanno Olmi, vencedora da Palma de Ouro do Festival de Cannes em 1978, intitulada “L’albero degli zoccoli”(a árvore dos tamancos). É um filme surpreendentemente belo que reconstrói de modo contemplativo e minimalista a vida dos camponeses da Provincia di Bergamo (norte da Itália) no final do séc. XIX. Aspectos de uma Itália ainda feudal, onde as relações de trabalho são pautadas pela servidão ao senhor das terras, chegam ao espectador através do olhar poético-biográfico do cineasta que nasceu nesta região. Olmi se aproxima um pouco de Pasolini neste sentido, ambos são cineastas de origem campesina que buscaram, em muitas de suas obras, religarem-se às tradições ou valores simbólicos provenientes do campo tais como a pureza de caráter, a humanidade e a sacralidade como condição primordial de suas personagens, o respeito pela natureza e a ingenuidade e beleza no viver dos humildes. E claro, no papel de militantes de esquerda, ambos os cineastas são fortemente atrelados ao conceito de cinema político e suas obras exibem a intercepção do discurso estético com o de crítica às relações sociais baseadas nas relações de poder entre o patrão e o camponês/operário.

Em “L’albero degli zoccoli”, a preferência de Olmi pela verdade na representação utilizando como atores os próprios habitantes da região, assim como as locações do lugar, a sua luz natural, etc, é a força dramática da obra. O dialeto do filme, bergamasco, é um italiano difícil de compreender e o seu ritmo me fez recordar da fala do gaúcho brasileiro com leves pitadas de francês.

Neste texto não pretendo me aprofundar mais, prefiro dar a voz ao cineasta-autor que além do roteiro e direção também assinou a direção de fotografia e montagem. Abaixo transcrevi um trecho da entrevista de Ermanno Olmi presente nos extras do DVD, que no Brasil foi lançado pela Versátil (mas não sei se no dvd brasileiro tem este extra). Uma entrevista comovente, na qual o cineasta tinha os olhos cheios de lágrimas (optei por deixá-la na lìngua original porque a beleza também está nas suas palavras como são). O que Olmi diz merece ser registrado, divulgado, destacado como sentenças de um artista de significativo gabarito e de um amor inenarrável pela Memória. “L’albero degli zoccoli”, para finalizar, é um filme-manifesto de rememoração e legitimação da cultura campesina milenar e carrega consigo as suas belezas plásticas e humanas contrastantes, feitas de dor e de cor, de sangue e perfume.

Depoimento de Ermanno Olmi – “L’albero degli zoccoli”, extra do dvd, 2001.

“Io non sono mai stato un cineasta per il cinema, direi che amo molto la vita, come tutti, e quindi amo rappresentare quella vita che mi appartene di piu, quella realtà che piu ha influenzato la mia esistenza. Io sono figlio di quella terra. E quindi, è come fare un ritratto della madre. La madre la riconosciamo davvero quando ormai è perduta. Quando l’ abbiamo accanto, la madre è una realtà che ci spetta e quindi non ne siamo del tutto consapevoli. E quando ci viene a mancare, allora cerchiamo nella memoria di ricomporre il suo volto, sentire le voci, avere addirittura una sensazione palpabile del ricordo. E questo somilglia molto al cinema”.

“Proprio perchè quella realtà è cosi marcadamento speciale, particolare, i protagonisti dovevano essere veri contadini, così come vera è la realtà scenografica, le stalle, la campagna, la luce. Non è la luce di un teatro di posa, ma è la luce delle stagione, proprio del fluire del tempo con le sue scansione naturali. Tutto questo per me ha un valore prioritario, al di sopra del cinema stesso, quindi il cinema è soltanto quello strumento che utilizziamo per poter stabilire un rapporto col pubblico e quindi per poter riferire al nostro destinatario quello che piu ci sta a cuore”.

“Dopo Cannes, il successo del film, il mondo contadino si è sentito riconosciuto e ho avuto anch’io la sensazione che anche in quel mondo intellettuale che viveva, sopratutto quel mondo di estrazione accademica, mantendendo delle distanze, con questo mondo considerato addirittura da alcuni non sufficientemente degno di essere una cultura, li, secondo me, molti argini si sono rotti, e molte mente illuminate hanno capito che il mondo contadino era depositario di una cultura millenaria”.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

A ùltima dos Taviani



"A Casa das Cotovias" (Le Masserie delle Allodole, 2007)

Paolo e Vittorio Taviani são fortemente ligados a causas sociais, à representação da arbitrariedade e poder de um indivíduo sobre outro, a eventos históricos que ilustram a crueldade a que pode chegar o ser humano frente aos seus desejos avarentos e individualistas. Os irmãos Taviani têm sua obra fortemente atrelada ao conceito de cinema político e com “A Casa das Cotovias” esses realizadores demonstraram que não perderam de vista o cinema que busca a liberdade do sujeito, mas infelizmente perderam, certamente, a mão que fazia os clássicos e premiados dramas sociais.

O belo “A Noite de São Lourenço”, filme realizado pela dupla em 1982, conta uma história situada na segunda guerra mundial quando os ocupadores nazistas pretendem massacrar a população do vilarejo de San Miniato, na Toscana. Diante dessa ameaça alguns moradores fogem do povoado em busca de sobrevivência e liberdade. O filme é uma narrativa épica que inicia com a narradora contando a história ao seu filho: a obra consiste em um único flashback. A história segue o ponto de vista da personagem que narra, entretanto, não se centra em protagonistas específicos, mas na pluralidade de trajetórias e conflitos dramáticos, fazendo com que o espectador se identifique e se emocione com os destinos de todos eles. Os personagens não existem em escala de importância, e ainda que vivenciem pequenos dramas individuais, o que está em foco é o rumo da comunidade, todos estão envolvidos em um projeto coletivo de libertação e justiça. Como proposta de retratação de um evento histórico, “A Noite de São Lourenço” consegue conjugar esses elementos épicos de forma primorosa e construir a trajetória coletiva do grupo social atingido pela violência da guerra.

Em “A Casa das Cotovias” o tom épico enunciado pelo conteúdo entra em contradição com o enunciado formal do filme, e a tragédia social do massacre dos armênios cometido pelos turcos durante a Primeira Guerra Mundial ganha dimensões privadas em que o ato individual heróico é louvado e o ato coletivo, negado. Formalmente a obra opta por individualizar processos históricos, além de inserir freqüentemente o sentimento do amor romântico e trágico: um filme em que a personagem má do capitão do exército turco/ partido da juventude turca é a responsável pela retaliação contra os armênios; é um filme em que “Romeu e Julieta” são atualizados na figura de uma dama armênia e um soldado turco; um filme em que a figura da heroína martirizada está na matriarca Sra. Avakian a quem todos procuram para pedir ajuda e sobre a qual a história é centrada (nela e na sua família); um filme em que em razão de uma personagem dedo-duro, o mendigo Nazim, o exército encontra os armênios escondidos na Casa das Cotovias. O mesmo Nazim, motivado pela culpa, posteriormente mobiliza forças para salvar as mulheres da família Avakian do acampamento turco; um filme que consegue criar uma história de amor no campo de concentração entre um soldado turco, Youssouf, e a prisioneira armênica Nunik. Youssouf, inclusive, após executar a ordem de matar Nunik, no final do filme é o herói que denuncia ao tribunal turco, durante o julgamento do massacre armênio, as atrocidades cometidas pelos soldados; “A Casa das Cotovias” aborda um evento histórico importante do qual ainda perduram as marcas na Turquia (os armênios constantemente exigem do Governo Turco o prosseguimento nos julgamentos pelo crime do massacre, há anos interrompido), mas sobre a ótica da personalização e banalização: na interpretação exageradamente dramática dos atores, no uso repetitivo da música grandiloqüente, na criação de situações dramáticas individuais, na valorização da vontade pessoal e do heroísmo do sujeito.

Diferentemente de “A Noite de São Lourenço”, em que a épica existe na forma e no conteúdo, “A Casa das Cotovias” é um equívoco, uma épica abortada e transformada em drama burguês. É uma pena que o projeto de cinema político dos Taviani tenha resultados como este, em que a intenção pelo engajamento social e pela liberdade coletiva são, na verdade, as cascas de um discurso individualista e burguês, no qual o ato heróico do indivíduo é favorecido em detrimento de uma perspectiva libertária do ato coletivo, próprio da épica.

Curiosidade: esta semana tive a oportunidade de conhecer os Taviani pessoalmente em um evento realizado no Centro Sperimentale. Muito gentis, sorridentes, brincalhòes, verdadeiros vovôs. Na ocasiào, perguntei-lhes sobre esta contradiçào de forma e conteùdo presente no seu ùltimo filme e, para a minha surpresa, responderam que nào haviam pensado sobre isso. Receberam minha pergunta com humildade e curiosidade, como se eu estivesse dizendo uma novidade. Entào eu que me pergunto: como è possivel que cineastas de tamanho porte cheguem ao final da carreira realizando filmes de maneira assim inconsequente (ou se poderia dizer instintiva???)?. Nào à toa "A casa das cotovias" nào foi bem recebido nem pelo pùblico, nem pela crìtica. Ecco, lasciamo perdere...