sexta-feira, 9 de maio de 2008

A punk de Paris

Paulo Emílio Salles Gomes refletindo as razões do subdesenvolvimento do cinema brasileiro constatou a nossa característica de imitadores do cinema americano. Uma das razões para tal inclinação é a nossa condição de tradição fundada, combinada, construída por diversas outras tradições colonizadoras. Salles Gomes indica a nossa ausência de uma cultura original ancestral: nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. Temos assim a nossa dominação em partes nomeada.

Uma das maiores críticas de Pier Paolo Pasolini à Itália em meados dos anos 60 dizia respeito ao efeito perverso da globalização no país. Uma nação que vivia o seu “milagre econômico”, sustentada por grossos investimentos do capital americano, desfrutava a lógica do consumo desenfreado: de carros, de roupas, de filmes. A indústria cultural americana invadiu o país, e Pasolini viu aí uma perigosa equação: imperialismo americano somado à nova burguesia consumista italiana seria igual ao aniquilamento das tradições culturais itálicas, e o surgimento de uma nova categoria social homogeneizada e americanizada.

Mais de três décadas nos separam das reflexões de Salles Gomes e de Pasolini. O Brasil continua dominado. A Itália está dominada. O Império Americano violentamente se impõe mundo afora. E em Paris eu vi uma menina punk que radicalmente me ensinou, sem nem mesmo perceber, a possibilidade do Resistir.

Esperávamos o metrô na estação Notre-Dame. Ela estava concentrada na música alta do seu mp3 enquanto eu lia em seu corpo o seu gesto político natural. Os punks, como qualquer outra etiqueta social, possuem determinados códigos que estabelecem a sua classificação: usam roupas pretas, apetrechos de metal prateado (colares, brincos, piercing, cintos), podem ter os cabelos coloridos, despentados, pontudos, podem ter tatuagem, podem usar coturno ou all star... Como uma etiqueta contemporânea universal, os punks que vi em São Paulo eram iguais aos que vi em Buenos Aires, que por sua vez eram iguais aos que eu vi em Roma, que eram iguais ao que eu vi em Madrid, e por aí vai. Mas os punks em Paris são diferentes.

A punk que observei no metrô usava roupa preta, brincos, piercing e cinto de metal, e tinha o cabelo vermelho despenteado, elementos que certamente a enquadram nessa etiqueta social do movimento punk, aliás, fortemente atrelada ao imaginário cultural americano. Entretanto, havia algo que a protegia da cultura da normalização: esta garota usava, além de uma faixa adornada nos cabelos, uma luva de seda, de um azul turquesa escandaloso decorado com rendas brancas que se estendiam sobre os dedos. Eu admirava a beleza daquela luva azul que relampagomente comunicou sua nacionalidade francesa. Tecido, desenho, detalhes, a elegância. . . signos de uma cultura. Afinal, a garota é parisiense. Naquele momento entendi o conceito de Resistência Cultural, não como discurso, mas como valor socialmente enraizado, e reflexo de uma política cultural de Estado consciente e eficaz, comprometida com a valorização e preservação da memória e das tradições históricas. Mas para além dos descontos em museus, teatros, cinemas. Para além dos programas e atividades oferecidas para crianças e jovens nas bibliotecas, cinemateca, galerias de arte. O que vi naquela punk parisiense foi a expressão concreta de um valor político daquela sociedade, um sentimento nacional imediato e inconsciente, porque historicamente consolidado.

Enquanto eu residia no meu tempo de epifania, a garota ouvia o seu mp3 sem perceber que ao seu redor algo novo acontecia: uma jovem de nação opressa entendeu a linguagem de uma Resistência. Recordei-me de Salles Gomes e de Pasolini, e de mundos devastados pela dominação ianque. A luva de seda azul turquesa foi prontamente transportada ao meu estoque conceitual de arma sacra, tal como a espada de ouro do rei-cavaleiro-medieval conservada na sala de armas do castelo até o dia em que deveria ser erguida em punho para enfrentar a guerra.

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