domingo, 18 de maio de 2008

As janelas abertas


(Trigêmeas. Anahí Borges, 15.05.2008)


(Melancolia. Anahí Borges, 15.05.2008)


(Estação do trenzinho urbano no Quarticciolo. Anahi Borges, 15.05.2008)


(Roupas com vento. Anahí Borges, 15.05.2008)

As duas mulheres não paravam de falar um minuto sequer: era Giuseppe que estava namorando uma moça de má índole, era a prima que começou a freqüentar os ambientes grosseiros das discotecas romanas, e depois passou a ser Francesca que havia se tornado rebelde e não queria mais ir à missa. Mah, quella crede di non essere più cattolica, vedi! Mãe e filha, 60 e 30 anos de idade, uma já tem os cabelos brancos enquanto a outra tem alguns quilos a mais. Conversavam alto, sentadas na calçada, enquanto todos os demais passageiros aguardavam impacientes a chegada do ônibus que já estava quinze minutos atrasado. Finalmente o 451 saiu da Piazza Cinecittà, lotado de gente, e seguiu sentido Quarticciolo, bairro da periferia de Roma. Durante todo o trajeto, mãe e filha continuavam em bom tom o seu discurso sobre a vida alheia e sobre a vizinha que havia engravidado de um rapaz que não queria assumir a criança. Em determinado momento esta mãe se desentendeu verbalmente com uma senhora sentada ao seu lado, fato que chamou a atenção de um rapaz que de sopetão interferiu na situação a fim de apaziguar as partes. A mãe se alterou ainda mais e começou a xingar o rapaz, afinal, nem italiano ele era e que direito havia de se intrometer na discussão entre senhoras italianas? Pouco depois a filha interveio para defender a mãe do rapaz que não era italiano e que a acusou de ser racista. Pena ele não haver compreendido logo que as mulheres tinham razão, diziam elas, pois tanto a filha como a mãe nasceram na Itália e ele, ao contrário, veio da Romênia, além disso, disse a filha, sua família abita naquela região desde os tempos de Mussolini, quando o avô veio do sul para trabalhar na cidade. Assim, o Quarticciolo é o seu lar, extensão da sua própria casa, fato este que legitima, segundo o direito natural à propriedade, a interferência seja da mãe seja da filha nas dinâmicas presentes naquele espaço físico-urbano. Na parada Molfeta, quase coração do bairro-Quarticciolo, as duas mulheres saíram do ônibus sem olhar para trás. Conversavam ainda de modo enérgico, como já haviam feito na Piazza Cinecittà, mas naquele momento não se sabia exatamente o assunto, se era sobre o rapaz romeno que as acusou de racismo dentro do 451 ou sobre o filho de Antonello que virou traficante, colaborando para a decadência do bairro.

Esta situação aconteceu ontem à tarde, enquanto eu pegava o ônibus para andar até este bairro para tirar fotografias. Assim, o Quarticciolo possui na figura destas duas mulheres uma possibilidade de síntese representativa do que poderia ser definido como a sua dinâmica sociológica provinciana. Apartamentos colados, separados por paredes finas através das quais todas as vozes e todos os sons atravessam tranquilamente, convivendo juntos, formando teias de comunicação direta e indireta entre os moradores, informações que extrapolam qualquer conceito de fronteira e privacidade. As senhoras conversam entre si debruçadas em suas janelas, trocam confidências e utensílios domésticos, emprestam o ouvido para a vizinha que precisa desabafar um problema ou um pouco de açúcar para que faça uma torta. Sons, olhares, objetos e falas perpassam paredes e janelas das cores e formas do Quarticciolo, fazendo da comunidade um corpo único formado por dinâmicas consolidadas, valores sociais estabelecidos e o desejo de poder e controle sobre o outro como potencialidade a ser exercida por cada membro desta rede social.

2 comentários:

Anônimo disse...

Teu texto enfoca a dinâmica do cotidiano com precisão quase que cirúrgica. A partir dessa incisão, revelam-se partes e relações desse organismo social chamado Quarticciolo. Não sei se fui de trem ou de ônibus, só sei que estava no meio da confusão. Obrigada, narrador viajante.

Avani

Marana Borges disse...

"Roupas com vento". Parabéns.