quinta-feira, 15 de maio de 2008

África - 68

Hoje começou a 61ª edição do Festival Cannes. E de pensar que exatamente há 40 anos este mesmo festival foi interrompido à metade em razão do apoio de cineastas como Godard e Truffaut à greve geral de estudantes e trabalhadores em Paris. Maio de 68: a baliza contemporânea de contestações e mudanças em escala mundial. Quando se fala neste período brilha o protagonismo europeu, seguido daquele ianque, do latino-americano e do asiático. Mas e a África? Por que quase não se fala do Maio de 68 neste continente? Como se manifestou no cinema africano, por exemplo, essa nova onda revolucionária?

No momento em que no ocidente se questionava os antigos valores culturais e, sob o entusiasmo do existencialismo, um marxismo mais contestatório repensava a cultura ocidental, da outra parte do Mediterrâneo novas sociedades estavam empenhadas em construir e não em desconstruir as suas tradições. Uma África neocolonizada, neomassacrada, neodividida, estava consolidando sua independência e a definição de uma identidade se apresentava como a sua maior urgência. Marrocos e Tunísia (independentes em 1956), Argélia (sanguinária guerra de libertação em 1962). O cinema africano nasceu militante, num acerto de contas com a dominação européia e acenando aos novos governos nacionais, às novas democracias.

A maior parte dos países, do Senegal à Mauritânia, da Costa do Marfim à Nigéria, do Camarões ao Congo, vê nascer seu próprio cinema nacional, em contornos e estilos ainda incertos e precários. Cinematografias que redesenham as suas mitologias, que problematizam o social, que reiventam seus discursos políticos. O recém-nascido cinema africano maghrebino nos anos 60 e 70 justifica sua linguagem retórica e precária (no quesito tecnológico e de construção do discurso narrativo consolidado há então 50 anos) ao fato de ter sido instrumentalizado pelos novos Estados em seus projetos institucional-nacionalistas.

Muitos autores da África sub-sahariana, entretanto, foram influenciados pela revolução cultural do Ocidente, visto que estudaram na França ou na União Soviética, ou mesmo a experiência da imigração constituiu por si só um estágio cultural. “África sobre o Senna”, filme realizado em 1955 por Paulin Soumanou Vieyra com alguns amigos senegaleses é considerado o primeiro filme feito por um africano. A obra conta a história de vida de um grupo de estudantes africanos em Paris, construindo questionamentos sobre os choques culturais. De temática semelhante é o filme “Concerto para um exílio”, 1968, de Desiré Ecaré, da Costa do Marfim. O cineasta mais renomado deste período foi Sembene Ousmane, escritor senegalese que se tornou o pai do cinema africano. Sembene emigrou para Paris muito jovem, trabalhando muito tempo em sub-empregos até filiar-se ao Partido Comunista Francês em meados dos anos 50 e depois consolidar sua carreira artística. Menos cerebral que seus colegas franceses engajados, o cinema de denúncia de Sembene é pautado pela linguagem da parábola com narrativa linear intencionada a mobilizar o espectador para a tomada de consciência sobre a desigualdade social. O seu “Borom Sarret”, 1963, foi o primeiro curta-metragem realizado por um cineasta africano na África e conta a história de um comerciante pobre denunciado à polícia por ter atravessado a fronteira proibida de um bairro rico na cidade de Dakar. Seu filme “Xala”, de 1975, é uma comédia-crítica sobre a elite africana do pós-colonialismo, cínica e oportunista. E com “Le mandat”, Sembene ganhou uma menção honrosa no Festival de Veneza de agosto de 1968 (festival este que em outro texto pretendo resgatar os episódios particulares de contestação).

Neste momento global de resgate dos acontecimentos de Maio de 68 em ocasião do seu aniversário de 40 anos acredito que seria um passo importante para o progresso de sua re-leitura e re-escritura uma significativa ampliação da grande circunferência cujo epicentro é a França. Sair do centro, validar as culturas periféricas do capitalismo para entender a real abrangência do movimento cultural de 68 está sendo um grande desafio para mim.

“Aquilo que me interessa é expor os problemas do povo ao qual pertenço. Não me interessa fazer cinema para os meus amigos ou para um pequeno círculo de iniciados. Para mim o cinema é um meio de ação política. Se eu abandonei a literatura pelo cinema é porque acredito que um filme, mais do que um livro, possa cristalizar uma tomada de consciência”. (Sembene Ousmane)

Um comentário:

Drika Nery disse...

Hoje acordei com muita saudade da alucinada vontade que eu tinha de fazer cinema...