segunda-feira, 5 de maio de 2008

Novos ares velhos



Curiosamente, em italiano dizer
“cinema político” remete à idéia de filme panfletário, um discurso óbvio a serviço de determinada ideologia sem grandes pretensões artísticas e que veicula mensagens ao público. Ao contrário do termo “cinema de engajamento social” (cinema di impegno sociale), que define filmes cujos enunciados são temas sociais, mas o discurso político se intercepta com o discurso estético, algo de urgente se conta, mas através de elaboração estética: a política é o meio, não o fim.

Dessa forma, o dito “cinema italiano de engajamento social”, produção fértil dos anos 60 e 70, permanece sendo uma das cerejas do bolo dos tempos áureos do cinema europeu de “maio de 68 e arredores” : Elio Petri, irmãos Taviani, Bernardo Bertolucci, Pier Paolo Pasolini, Francesco Rosi, Giuliano Montaldo, Marco Bellochio, Francesco Maselli, para citar alguns dos nomes imortalizados por esse período. Mais ainda as suas obras: “A Classe Operária Vai Ao Paraíso”, “Pai, Patrão”, “Antes da Revolução”, “Teorema”, “O Bandido Giuliano”, “Giordano Bruno”, “Os Punhos Cerrados”, “Carta Aberta em um Jornal da Tarde”, etc., etc. Filmes que marcaram a história do cinema, que refletiram questões políticas e valores libertários próprios à sua época, que invadiram salas no mundo inteiro, conquistando o gosto da crítica e sendo sucesso de público.

Certo que, parafraseando Godard - um cinema político deve ser feito politicamente - tendo a desconfiar de muitas dessas obras citadas como políticas, sendo que no plano lingüístico, de construção do discurso estético, permanecem sendo conformistas e moralizantes e, portanto, oportunistas porque se valem de personagens e situações históricas plausíveis para uma constituição de imagem-discurso libertária e não o fazem libertariamente. Ao contrário. Na maioria das vezes, essas obras além de manipular nocivamente a impressão de verdade que o tema possui, são transformadas em verdadeiros dramas burgueses (no sentido estrito do conceito) em que a História ganha dimensões privadas e o ato individual heróico é louvado enquanto o coletivo, negado. Individualização de processos históricos. Utilitarismo. Conformismo. Odeio!

Bem, tudo para dizer que não obstante tal passado glorioso, o cinema italiano anda mal das pernas, ou melhor, da cabeça (mas bem de bolso... porque afinal faz boas, quando não excelentes, bilheterias). A Itália vive um período de centralização cinematográfica (as maiores produtora e distribuidora de cinema, por exemplo, pertencem a Berlusconi) somado ao fato do aumento crescente dos filmes italianos televisivos (realizados para irem ao ar pelas emissoras nacionais. Parênteses: Berlusconi é dono de 3 canais de televisão e agora na condição de Presidente do Conselho, administrará ainda mais 3 canais estatais: RAI 1, 2 e 3). Ou seja, resumindo: a linha cultural da produção audiovisual italiana é berlusconiana, fato que preocupa muito a intelectualidade nacional. Ou seja, tendencialmente prevalece o filme de amor, a comédia besteirol, ou filme policiesco-mafioso.

Mas eis que na semana passada uma onda de otimismo atingiu os cinéfilos: dois filmes italianos foram selecionados para a competição ao Festival de Cannes – “il divo”, de Paolo Sorrentino, e “Gomorra”, de Matteo Garrone (além de terem sido selecionados mais dois filmes para serem exibidos fora da competição). Ambos cineastas under-40 considerados entre os melhores talentos contemporâneos. Sorrentino já está, de fato, entre os meus preferidos da jovem guarda, ao lado de Savério Costanzo ("Private", "in memoria di me"). O seu penúltimo filme, “Le consequenze dell’amore”, é de uma originalidade e pertinência cinematográfica inquestionável (até o uso da trilha sonora é impecável, construído como um discurso estético, e não um complemento emotivo à história). Enfim, fato é que ambos os filmes, "il divo" e "Gomorra", possuem o mesmo ator como protagonista (Toni Sevillo – para mim um dos maiores contemporâneos, inesquecível seu personagem em “Le consequenze dell’amore”), ambos os filmes retratam uma Itália devastada, ambos os filmes são definidos como políticos. “Il divo”, de Sorrentino, conta a história de Giulio Andreotti, grande personagem da vida pública italiana ligado à máfia, e “Gomorra”, de Garrone, conta a máfia do sul da Itália. Em um contexto em que, como já foi dito, a linha cultural do país é berlusconiana, é esperado que o reconhecimento de tais filmes venha acompanhado de uma quase histeria da parte da imprensa esclarecida, na esperança de que a ida a Cannes seja o sinal de que apesar dos pesares a Itália poderá reconquistar o seu histórico prestígio na sétima arte. E mais ainda se este lugar está no pódio do cinema de engajamento social dos anos 60 e 70, que foi compartilhado por todos os chamados mestres do cinema itálico. Eu, particularmente, não assisti ainda a nenhum desses dois filmes (a previsão de estréia em Roma é para depois de maio) e estou curiosa para vê-los. Quero verificar os seus frescores, e problematizar se são obras feitas politicamente ou se são conformistas, se são filhas de “Teorema” ou irmãs dos filmes biográficos da RAI, ainda que os seus motes sejam urgentemente políticos de serem afrontados. Mas fato è que confio em Sorrentimo e Garrone...esperemos que eu não sinta ácaros pelo ar...

Imagens: à dir. Matteo Garrone (filme "Gomorra") e à esq. Paolo Sorrentino (filme "il divo")

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