Sexta-feira acalorada, o verão disfarçado de primavera. Estávamos em seis amigos tomando uma cerveja na tradicional cervejaria de Roma: Peroni. Estávamos animados conversando sobre cinema e os filmes italianos indicados este ano à Palma de Ouro em Cannes. Em determinado momento escutei o som do português. Ao meu lado, um senhor de uns 65 anos pedia à minha amiga a toalha de papel que cobria a nossa mesa porque nela estava estampada a história daquele lugar, com fotos e tudo o mais. “io quero esto papel! Quero fare um quadro com ele!”. Eu me virei imediatamente para olhá-lo no rosto. “Posso signorina, pegare esta toalha come lembrança?”... Aquele som do português... há algum tempo não o ouvia assim, pela rua, por acaso. Eu olhava aquele rosto e aquele som... demorei a compreendê-lo, a acreditar nele. Edward Said que analisa em seu ensaio “reflexões sobre o exílio” a emoção e o estranhamento característicos quando dois estrangeiros de uma mesma nacionalidade se encontram no exterior (depois de algum tempo de “exílio”).
Abre parênteses: no primeiro de maio italiano houve um show para os trabalhadores organizado pelos sindicatos nacionais. Eu não estava muito a fim de ir porque não queria nem assistir aos artistas da televisão subindo ao palco para fazer discurso proletário nem escutar a típica música enlatada destinada a tais eventos representativos da política do pão e circo (como a festa da Força Sindical em SP, por exemplo). Mas em determinado momento, mesmo sem ter conferido a programação, decidi dar um pulo na festa para ver, afinal, como era. Chegando à Piazza San Giovanni senti ecoando uma voz conhecida cantando samba-rock. Em Roma? Não, não, estou delirando. Isso se chama saudade... Pensei. Dois dias antes havia acontecido em São Paulo a Virada Cultural em que Jorge Benjor, meu ídolo-amado, havia feito um show inesquecível, super alto-astral, que soube porque li nos jornais. Como eu queria ter estado na Virada Cultural. E neste show! Enquanto eu me aproximava do palco montado na Piazza San Giovanni aquele samba-rock ficava cada vez mais alto, e contraditoriamente, mais incompreensível para mim. Até que no telão vi projetado em close-up o rosto do meu herói com aqueles óculos escuros redondos, seu charme! Cantava moro, num país tropical... “Meu Deus, mas esse cover é mesmo fantástico”, pensei. “Mas será possível que seja ele mesmo?”. “Mas esses óculos escuros, é a sua cara!”. “Essa voz...Meus Deus! É mesmo o Jorge Benjor!!!!” .... E então pulei, dancei, me acabei no chão daquela praça romana.
Fecha parênteses. Assim como demorei a acreditar naquele brasileiro que cantava na festa do primeiro de maio, demorei a entender o senhor ao meu lado que pedia a toalha à minha amiga. “Mi scusi signore, ma da dove viene?” perguntei-lhe, porque poderia ser que viesse de Portugal, quem sabe. “Do Brasil”, me respondeu! “Eu também sou brasileira!”, disse-lhe entusiasmada e então tudo virou festa! Ele estava de saída, a esposa parada na porta com o casal de amigos esperava que resolvesse logo o lance da toalha de papel. Mas naquele momento o senhor havia tido uma crise histérica de alegria, queria um copo para brindar conosco, exalava brasilidade, disse que mora no bairro da Lapa, em São Paulo. Naquele momento o garçom chegou com as cervejas que havíamos solicitado há pelo menos meia hora atrás. O senhor insistiu que queria um copo para brindar conosco. “Mah, siete brasiliani?”, perguntou-nos o garçom cabo-verdiano. “Sim, sim, somos!”, respondemos-lhe. “Ecco! Sono brasiliani, sono brasiliani!” e de repente do meio do salão chegou um garçom italiano que fez um batuque na nossa mesa enquanto o garçom cabo-verdiano cantava um samba do Cartola, com seu sotaque português de Portugal: “Aconteceu, eu não esperava mas aconteceu, todo o bem que fiz se quiser esquecer...”. Ali, de repente, no canto da mesa do tradicional Peroni em Roma um samba acontecia, realizado por brasileiros, italianos e um cabo-verdiano. Improvisado, inusitado, excêntrico. Depois do último acorde, os garçons retomaram o serviço, o senhor se despediu alegre e partiu esquecido da toalha de papel. Na mesa, o silêncio. Todos restamos com a melancolia daquela suspensão espaço-temporal interrompida. Estávamos novamente diante de nossas cervejas para falar de cinema. Então Guido tomou a decisão: “Dopo di questo ragazzi, vi propongo un brinde al Brasile, a questa terra meravigliosa!”. E assim, brindamos.
segunda-feira, 26 de maio de 2008
sexta-feira, 23 de maio de 2008
As 140 ovelhas
Eu passeava pelo Parco dell’Appia Antica quando de repente no meio do meu caminho vi dezenas de ovelhas. Este parque é uma grande reserva arqueológica em que adultos que fazem esportes diários convivem com crianças que brincam nos playgrounds e animais que pastam no capim: vacas, cavalos, carneiros. É o parque mais heterogêneo e surpreendente de Roma, e nos finais de semana ensolarados as famílias se reúnem ali para um pic-nic, e os homens, para a partida de futebol. E naquele dia em que eu passeava distraída pelo gramado do parque me deparei com cento e quarenta ovelhas.
Bééééé... Começavam a trocar sinais entre elas. Bééééé... O que deveriam fazer? Eu é que pergunto. Será que continuo meu caminho, indiferente a tudo isso, e atravesso pelo meio do grupo ou é possível que alguma delas me ataque em legítima defesa? Bééééé... Claro que era uma aventura para mim, aquele amontoado de bola de lã impedindo a minha passagem e eu tendo que tomar fôlego para assoprá-los, com medo de que o vento acabasse por trazê-los de volta. Bééééé... Quando movi o primeiro passo levantaram as cabeças, acentuaram o grito e se aproximaram para me atacar. Bééééé... É agora! Pensei. Mas para a minha surpresa esses animais estavam, na verdade, abrindo alas para eu passar: ovelhas, carneiros e carneirinhos estavam todos trepidantes e agrupados abrindo uma pequena fresta no caminho para que eu os deixasse em paz.
Enquanto eu passava pelo meio das cento e quarenta ovelhas percebi que o som do seu balido é semelhante ao som do lamento de uma criança. Béééé... quase um choro. A ovelha é um animal amedrontado, geneticamente submisso. O processo histórico da espécie é marcado pela opressão e violência, e como conseqüência esses animais já têm incorporados em si o susto e a hesitação. O corpo que se movimenta em atinada fuga e o típico olhar com o rabo do olho é a expressão mecanizada do antigo alarme de sua espécie. Naquele momento senti pena das ovelhas e dos seus corpos carentes de qualquer elemento de defesa (chifre, crista, dentes afiados). Recordei-me da galinha do conto da Clarice Lispector, que depois de sua fuga corajosa e atrapalhada, e de se tornar a adorada rainha na casa daquela família, acaba tendo o fim tìpico de uma galinha, cuja espécie também é mecanicamente amedrontada: na panela.
Bééééé... Começavam a trocar sinais entre elas. Bééééé... O que deveriam fazer? Eu é que pergunto. Será que continuo meu caminho, indiferente a tudo isso, e atravesso pelo meio do grupo ou é possível que alguma delas me ataque em legítima defesa? Bééééé... Claro que era uma aventura para mim, aquele amontoado de bola de lã impedindo a minha passagem e eu tendo que tomar fôlego para assoprá-los, com medo de que o vento acabasse por trazê-los de volta. Bééééé... Quando movi o primeiro passo levantaram as cabeças, acentuaram o grito e se aproximaram para me atacar. Bééééé... É agora! Pensei. Mas para a minha surpresa esses animais estavam, na verdade, abrindo alas para eu passar: ovelhas, carneiros e carneirinhos estavam todos trepidantes e agrupados abrindo uma pequena fresta no caminho para que eu os deixasse em paz.
Enquanto eu passava pelo meio das cento e quarenta ovelhas percebi que o som do seu balido é semelhante ao som do lamento de uma criança. Béééé... quase um choro. A ovelha é um animal amedrontado, geneticamente submisso. O processo histórico da espécie é marcado pela opressão e violência, e como conseqüência esses animais já têm incorporados em si o susto e a hesitação. O corpo que se movimenta em atinada fuga e o típico olhar com o rabo do olho é a expressão mecanizada do antigo alarme de sua espécie. Naquele momento senti pena das ovelhas e dos seus corpos carentes de qualquer elemento de defesa (chifre, crista, dentes afiados). Recordei-me da galinha do conto da Clarice Lispector, que depois de sua fuga corajosa e atrapalhada, e de se tornar a adorada rainha na casa daquela família, acaba tendo o fim tìpico de uma galinha, cuja espécie também é mecanicamente amedrontada: na panela.
domingo, 18 de maio de 2008
As janelas abertas
(Trigêmeas. Anahí Borges, 15.05.2008)
(Melancolia. Anahí Borges, 15.05.2008)
(Estação do trenzinho urbano no Quarticciolo. Anahi Borges, 15.05.2008)
(Roupas com vento. Anahí Borges, 15.05.2008)
As duas mulheres não paravam de falar um minuto sequer: era Giuseppe que estava namorando uma moça de má índole, era a prima que começou a freqüentar os ambientes grosseiros das discotecas romanas, e depois passou a ser Francesca que havia se tornado rebelde e não queria mais ir à missa. Mah, quella crede di non essere più cattolica, vedi! Mãe e filha, 60 e 30 anos de idade, uma já tem os cabelos brancos enquanto a outra tem alguns quilos a mais. Conversavam alto, sentadas na calçada, enquanto todos os demais passageiros aguardavam impacientes a chegada do ônibus que já estava quinze minutos atrasado. Finalmente o 451 saiu da Piazza Cinecittà, lotado de gente, e seguiu sentido Quarticciolo, bairro da periferia de Roma. Durante todo o trajeto, mãe e filha continuavam em bom tom o seu discurso sobre a vida alheia e sobre a vizinha que havia engravidado de um rapaz que não queria assumir a criança. Em determinado momento esta mãe se desentendeu verbalmente com uma senhora sentada ao seu lado, fato que chamou a atenção de um rapaz que de sopetão interferiu na situação a fim de apaziguar as partes. A mãe se alterou ainda mais e começou a xingar o rapaz, afinal, nem italiano ele era e que direito havia de se intrometer na discussão entre senhoras italianas? Pouco depois a filha interveio para defender a mãe do rapaz que não era italiano e que a acusou de ser racista. Pena ele não haver compreendido logo que as mulheres tinham razão, diziam elas, pois tanto a filha como a mãe nasceram na Itália e ele, ao contrário, veio da Romênia, além disso, disse a filha, sua família abita naquela região desde os tempos de Mussolini, quando o avô veio do sul para trabalhar na cidade. Assim, o Quarticciolo é o seu lar, extensão da sua própria casa, fato este que legitima, segundo o direito natural à propriedade, a interferência seja da mãe seja da filha nas dinâmicas presentes naquele espaço físico-urbano. Na parada Molfeta, quase coração do bairro-Quarticciolo, as duas mulheres saíram do ônibus sem olhar para trás. Conversavam ainda de modo enérgico, como já haviam feito na Piazza Cinecittà, mas naquele momento não se sabia exatamente o assunto, se era sobre o rapaz romeno que as acusou de racismo dentro do 451 ou sobre o filho de Antonello que virou traficante, colaborando para a decadência do bairro.
Esta situação aconteceu ontem à tarde, enquanto eu pegava o ônibus para andar até este bairro para tirar fotografias. Assim, o Quarticciolo possui na figura destas duas mulheres uma possibilidade de síntese representativa do que poderia ser definido como a sua dinâmica sociológica provinciana. Apartamentos colados, separados por paredes finas através das quais todas as vozes e todos os sons atravessam tranquilamente, convivendo juntos, formando teias de comunicação direta e indireta entre os moradores, informações que extrapolam qualquer conceito de fronteira e privacidade. As senhoras conversam entre si debruçadas em suas janelas, trocam confidências e utensílios domésticos, emprestam o ouvido para a vizinha que precisa desabafar um problema ou um pouco de açúcar para que faça uma torta. Sons, olhares, objetos e falas perpassam paredes e janelas das cores e formas do Quarticciolo, fazendo da comunidade um corpo único formado por dinâmicas consolidadas, valores sociais estabelecidos e o desejo de poder e controle sobre o outro como potencialidade a ser exercida por cada membro desta rede social.
quinta-feira, 15 de maio de 2008
África - 68
Hoje começou a 61ª edição do Festival Cannes. E de pensar que exatamente há 40 anos este mesmo festival foi interrompido à metade em razão do apoio de cineastas como Godard e Truffaut à greve geral de estudantes e trabalhadores em Paris. Maio de 68: a baliza contemporânea de contestações e mudanças em escala mundial. Quando se fala neste período brilha o protagonismo europeu, seguido daquele ianque, do latino-americano e do asiático. Mas e a África? Por que quase não se fala do Maio de 68 neste continente? Como se manifestou no cinema africano, por exemplo, essa nova onda revolucionária?
No momento em que no ocidente se questionava os antigos valores culturais e, sob o entusiasmo do existencialismo, um marxismo mais contestatório repensava a cultura ocidental, da outra parte do Mediterrâneo novas sociedades estavam empenhadas em construir e não em desconstruir as suas tradições. Uma África neocolonizada, neomassacrada, neodividida, estava consolidando sua independência e a definição de uma identidade se apresentava como a sua maior urgência. Marrocos e Tunísia (independentes em 1956), Argélia (sanguinária guerra de libertação em 1962). O cinema africano nasceu militante, num acerto de contas com a dominação européia e acenando aos novos governos nacionais, às novas democracias.
A maior parte dos países, do Senegal à Mauritânia, da Costa do Marfim à Nigéria, do Camarões ao Congo, vê nascer seu próprio cinema nacional, em contornos e estilos ainda incertos e precários. Cinematografias que redesenham as suas mitologias, que problematizam o social, que reiventam seus discursos políticos. O recém-nascido cinema africano maghrebino nos anos 60 e 70 justifica sua linguagem retórica e precária (no quesito tecnológico e de construção do discurso narrativo consolidado há então 50 anos) ao fato de ter sido instrumentalizado pelos novos Estados em seus projetos institucional-nacionalistas.
Muitos autores da África sub-sahariana, entretanto, foram influenciados pela revolução cultural do Ocidente, visto que estudaram na França ou na União Soviética, ou mesmo a experiência da imigração constituiu por si só um estágio cultural. “África sobre o Senna”, filme realizado em 1955 por Paulin Soumanou Vieyra com alguns amigos senegaleses é considerado o primeiro filme feito por um africano. A obra conta a história de vida de um grupo de estudantes africanos em Paris, construindo questionamentos sobre os choques culturais. De temática semelhante é o filme “Concerto para um exílio”, 1968, de Desiré Ecaré, da Costa do Marfim. O cineasta mais renomado deste período foi Sembene Ousmane, escritor senegalese que se tornou o pai do cinema africano. Sembene emigrou para Paris muito jovem, trabalhando muito tempo em sub-empregos até filiar-se ao Partido Comunista Francês em meados dos anos 50 e depois consolidar sua carreira artística. Menos cerebral que seus colegas franceses engajados, o cinema de denúncia de Sembene é pautado pela linguagem da parábola com narrativa linear intencionada a mobilizar o espectador para a tomada de consciência sobre a desigualdade social. O seu “Borom Sarret”, 1963, foi o primeiro curta-metragem realizado por um cineasta africano na África e conta a história de um comerciante pobre denunciado à polícia por ter atravessado a fronteira proibida de um bairro rico na cidade de Dakar. Seu filme “Xala”, de 1975, é uma comédia-crítica sobre a elite africana do pós-colonialismo, cínica e oportunista. E com “Le mandat”, Sembene ganhou uma menção honrosa no Festival de Veneza de agosto de 1968 (festival este que em outro texto pretendo resgatar os episódios particulares de contestação).
Neste momento global de resgate dos acontecimentos de Maio de 68 em ocasião do seu aniversário de 40 anos acredito que seria um passo importante para o progresso de sua re-leitura e re-escritura uma significativa ampliação da grande circunferência cujo epicentro é a França. Sair do centro, validar as culturas periféricas do capitalismo para entender a real abrangência do movimento cultural de 68 está sendo um grande desafio para mim.
“Aquilo que me interessa é expor os problemas do povo ao qual pertenço. Não me interessa fazer cinema para os meus amigos ou para um pequeno círculo de iniciados. Para mim o cinema é um meio de ação política. Se eu abandonei a literatura pelo cinema é porque acredito que um filme, mais do que um livro, possa cristalizar uma tomada de consciência”. (Sembene Ousmane)
No momento em que no ocidente se questionava os antigos valores culturais e, sob o entusiasmo do existencialismo, um marxismo mais contestatório repensava a cultura ocidental, da outra parte do Mediterrâneo novas sociedades estavam empenhadas em construir e não em desconstruir as suas tradições. Uma África neocolonizada, neomassacrada, neodividida, estava consolidando sua independência e a definição de uma identidade se apresentava como a sua maior urgência. Marrocos e Tunísia (independentes em 1956), Argélia (sanguinária guerra de libertação em 1962). O cinema africano nasceu militante, num acerto de contas com a dominação européia e acenando aos novos governos nacionais, às novas democracias.
A maior parte dos países, do Senegal à Mauritânia, da Costa do Marfim à Nigéria, do Camarões ao Congo, vê nascer seu próprio cinema nacional, em contornos e estilos ainda incertos e precários. Cinematografias que redesenham as suas mitologias, que problematizam o social, que reiventam seus discursos políticos. O recém-nascido cinema africano maghrebino nos anos 60 e 70 justifica sua linguagem retórica e precária (no quesito tecnológico e de construção do discurso narrativo consolidado há então 50 anos) ao fato de ter sido instrumentalizado pelos novos Estados em seus projetos institucional-nacionalistas.
Muitos autores da África sub-sahariana, entretanto, foram influenciados pela revolução cultural do Ocidente, visto que estudaram na França ou na União Soviética, ou mesmo a experiência da imigração constituiu por si só um estágio cultural. “África sobre o Senna”, filme realizado em 1955 por Paulin Soumanou Vieyra com alguns amigos senegaleses é considerado o primeiro filme feito por um africano. A obra conta a história de vida de um grupo de estudantes africanos em Paris, construindo questionamentos sobre os choques culturais. De temática semelhante é o filme “Concerto para um exílio”, 1968, de Desiré Ecaré, da Costa do Marfim. O cineasta mais renomado deste período foi Sembene Ousmane, escritor senegalese que se tornou o pai do cinema africano. Sembene emigrou para Paris muito jovem, trabalhando muito tempo em sub-empregos até filiar-se ao Partido Comunista Francês em meados dos anos 50 e depois consolidar sua carreira artística. Menos cerebral que seus colegas franceses engajados, o cinema de denúncia de Sembene é pautado pela linguagem da parábola com narrativa linear intencionada a mobilizar o espectador para a tomada de consciência sobre a desigualdade social. O seu “Borom Sarret”, 1963, foi o primeiro curta-metragem realizado por um cineasta africano na África e conta a história de um comerciante pobre denunciado à polícia por ter atravessado a fronteira proibida de um bairro rico na cidade de Dakar. Seu filme “Xala”, de 1975, é uma comédia-crítica sobre a elite africana do pós-colonialismo, cínica e oportunista. E com “Le mandat”, Sembene ganhou uma menção honrosa no Festival de Veneza de agosto de 1968 (festival este que em outro texto pretendo resgatar os episódios particulares de contestação).
Neste momento global de resgate dos acontecimentos de Maio de 68 em ocasião do seu aniversário de 40 anos acredito que seria um passo importante para o progresso de sua re-leitura e re-escritura uma significativa ampliação da grande circunferência cujo epicentro é a França. Sair do centro, validar as culturas periféricas do capitalismo para entender a real abrangência do movimento cultural de 68 está sendo um grande desafio para mim.
“Aquilo que me interessa é expor os problemas do povo ao qual pertenço. Não me interessa fazer cinema para os meus amigos ou para um pequeno círculo de iniciados. Para mim o cinema é um meio de ação política. Se eu abandonei a literatura pelo cinema é porque acredito que um filme, mais do que um livro, possa cristalizar uma tomada de consciência”. (Sembene Ousmane)
segunda-feira, 12 de maio de 2008
Tristeza poética-picasso
Não sei o que fazer com a melancolia de domingo
Com a pontualidade da melancolia de domingo
O insistente déjà vu
De me sentir o Arlequim de Picasso
Sentado com uma fantasia colorida
Olhando com uns olhos sorumbáticos
O tempo, o silêncio, a respiração
De uma tarde dominical regular
Começo a pensar como seria
Uma revolução popular melancólica
Trabalhadores e artistas com olhares-arlequins
Defendendo os ideais de fraternidade e liberdade
Acho que nesta revolução não existiria a violência
E o sangue se transformaria nas tintas coloridas
Da geração de Montparnasse
Foujita, Kisling, Picasso, Soutine, Chagall, Matisse, Modigliani
A graça poética e o maneirismo velado pela nostalgia
Que marcaram os ares parisienses dos anos vinte
Preciso urgentemente de uma linguagem
Que me ajude a traduzir a minha melancolia
E as periódicas tardes de domingo de sol
(Imagem: Paul como um arlequim. Pablo Picasso, 1924.)
sexta-feira, 9 de maio de 2008
A punk de Paris
Paulo Emílio Salles Gomes refletindo as razões do subdesenvolvimento do cinema brasileiro constatou a nossa característica de imitadores do cinema americano. Uma das razões para tal inclinação é a nossa condição de tradição fundada, combinada, construída por diversas outras tradições colonizadoras. Salles Gomes indica a nossa ausência de uma cultura original ancestral: nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. Temos assim a nossa dominação em partes nomeada.
Uma das maiores críticas de Pier Paolo Pasolini à Itália em meados dos anos 60 dizia respeito ao efeito perverso da globalização no país. Uma nação que vivia o seu “milagre econômico”, sustentada por grossos investimentos do capital americano, desfrutava a lógica do consumo desenfreado: de carros, de roupas, de filmes. A indústria cultural americana invadiu o país, e Pasolini viu aí uma perigosa equação: imperialismo americano somado à nova burguesia consumista italiana seria igual ao aniquilamento das tradições culturais itálicas, e o surgimento de uma nova categoria social homogeneizada e americanizada.
Mais de três décadas nos separam das reflexões de Salles Gomes e de Pasolini. O Brasil continua dominado. A Itália está dominada. O Império Americano violentamente se impõe mundo afora. E em Paris eu vi uma menina punk que radicalmente me ensinou, sem nem mesmo perceber, a possibilidade do Resistir.
Esperávamos o metrô na estação Notre-Dame. Ela estava concentrada na música alta do seu mp3 enquanto eu lia em seu corpo o seu gesto político natural. Os punks, como qualquer outra etiqueta social, possuem determinados códigos que estabelecem a sua classificação: usam roupas pretas, apetrechos de metal prateado (colares, brincos, piercing, cintos), podem ter os cabelos coloridos, despentados, pontudos, podem ter tatuagem, podem usar coturno ou all star... Como uma etiqueta contemporânea universal, os punks que vi em São Paulo eram iguais aos que vi em Buenos Aires, que por sua vez eram iguais aos que eu vi em Roma, que eram iguais ao que eu vi em Madrid, e por aí vai. Mas os punks em Paris são diferentes.
A punk que observei no metrô usava roupa preta, brincos, piercing e cinto de metal, e tinha o cabelo vermelho despenteado, elementos que certamente a enquadram nessa etiqueta social do movimento punk, aliás, fortemente atrelada ao imaginário cultural americano. Entretanto, havia algo que a protegia da cultura da normalização: esta garota usava, além de uma faixa adornada nos cabelos, uma luva de seda, de um azul turquesa escandaloso decorado com rendas brancas que se estendiam sobre os dedos. Eu admirava a beleza daquela luva azul que relampagomente comunicou sua nacionalidade francesa. Tecido, desenho, detalhes, a elegância. . . signos de uma cultura. Afinal, a garota é parisiense. Naquele momento entendi o conceito de Resistência Cultural, não como discurso, mas como valor socialmente enraizado, e reflexo de uma política cultural de Estado consciente e eficaz, comprometida com a valorização e preservação da memória e das tradições históricas. Mas para além dos descontos em museus, teatros, cinemas. Para além dos programas e atividades oferecidas para crianças e jovens nas bibliotecas, cinemateca, galerias de arte. O que vi naquela punk parisiense foi a expressão concreta de um valor político daquela sociedade, um sentimento nacional imediato e inconsciente, porque historicamente consolidado.
Enquanto eu residia no meu tempo de epifania, a garota ouvia o seu mp3 sem perceber que ao seu redor algo novo acontecia: uma jovem de nação opressa entendeu a linguagem de uma Resistência. Recordei-me de Salles Gomes e de Pasolini, e de mundos devastados pela dominação ianque. A luva de seda azul turquesa foi prontamente transportada ao meu estoque conceitual de arma sacra, tal como a espada de ouro do rei-cavaleiro-medieval conservada na sala de armas do castelo até o dia em que deveria ser erguida em punho para enfrentar a guerra.
Uma das maiores críticas de Pier Paolo Pasolini à Itália em meados dos anos 60 dizia respeito ao efeito perverso da globalização no país. Uma nação que vivia o seu “milagre econômico”, sustentada por grossos investimentos do capital americano, desfrutava a lógica do consumo desenfreado: de carros, de roupas, de filmes. A indústria cultural americana invadiu o país, e Pasolini viu aí uma perigosa equação: imperialismo americano somado à nova burguesia consumista italiana seria igual ao aniquilamento das tradições culturais itálicas, e o surgimento de uma nova categoria social homogeneizada e americanizada.
Mais de três décadas nos separam das reflexões de Salles Gomes e de Pasolini. O Brasil continua dominado. A Itália está dominada. O Império Americano violentamente se impõe mundo afora. E em Paris eu vi uma menina punk que radicalmente me ensinou, sem nem mesmo perceber, a possibilidade do Resistir.
Esperávamos o metrô na estação Notre-Dame. Ela estava concentrada na música alta do seu mp3 enquanto eu lia em seu corpo o seu gesto político natural. Os punks, como qualquer outra etiqueta social, possuem determinados códigos que estabelecem a sua classificação: usam roupas pretas, apetrechos de metal prateado (colares, brincos, piercing, cintos), podem ter os cabelos coloridos, despentados, pontudos, podem ter tatuagem, podem usar coturno ou all star... Como uma etiqueta contemporânea universal, os punks que vi em São Paulo eram iguais aos que vi em Buenos Aires, que por sua vez eram iguais aos que eu vi em Roma, que eram iguais ao que eu vi em Madrid, e por aí vai. Mas os punks em Paris são diferentes.
A punk que observei no metrô usava roupa preta, brincos, piercing e cinto de metal, e tinha o cabelo vermelho despenteado, elementos que certamente a enquadram nessa etiqueta social do movimento punk, aliás, fortemente atrelada ao imaginário cultural americano. Entretanto, havia algo que a protegia da cultura da normalização: esta garota usava, além de uma faixa adornada nos cabelos, uma luva de seda, de um azul turquesa escandaloso decorado com rendas brancas que se estendiam sobre os dedos. Eu admirava a beleza daquela luva azul que relampagomente comunicou sua nacionalidade francesa. Tecido, desenho, detalhes, a elegância. . . signos de uma cultura. Afinal, a garota é parisiense. Naquele momento entendi o conceito de Resistência Cultural, não como discurso, mas como valor socialmente enraizado, e reflexo de uma política cultural de Estado consciente e eficaz, comprometida com a valorização e preservação da memória e das tradições históricas. Mas para além dos descontos em museus, teatros, cinemas. Para além dos programas e atividades oferecidas para crianças e jovens nas bibliotecas, cinemateca, galerias de arte. O que vi naquela punk parisiense foi a expressão concreta de um valor político daquela sociedade, um sentimento nacional imediato e inconsciente, porque historicamente consolidado.
Enquanto eu residia no meu tempo de epifania, a garota ouvia o seu mp3 sem perceber que ao seu redor algo novo acontecia: uma jovem de nação opressa entendeu a linguagem de uma Resistência. Recordei-me de Salles Gomes e de Pasolini, e de mundos devastados pela dominação ianque. A luva de seda azul turquesa foi prontamente transportada ao meu estoque conceitual de arma sacra, tal como a espada de ouro do rei-cavaleiro-medieval conservada na sala de armas do castelo até o dia em que deveria ser erguida em punho para enfrentar a guerra.
segunda-feira, 5 de maio de 2008
Novos ares velhos
Curiosamente, em italiano dizer
“cinema político” remete à idéia de filme panfletário, um discurso óbvio a serviço de determinada ideologia sem grandes pretensões artísticas e que veicula mensagens ao público. Ao contrário do termo “cinema de engajamento social” (cinema di impegno sociale), que define filmes cujos enunciados são temas sociais, mas o discurso político se intercepta com o discurso estético, algo de urgente se conta, mas através de elaboração estética: a política é o meio, não o fim.
Dessa forma, o dito “cinema italiano de engajamento social”, produção fértil dos anos 60 e 70, permanece sendo uma das cerejas do bolo dos tempos áureos do cinema europeu de “maio de 68 e arredores” : Elio Petri, irmãos Taviani, Bernardo Bertolucci, Pier Paolo Pasolini, Francesco Rosi, Giuliano Montaldo, Marco Bellochio, Francesco Maselli, para citar alguns dos nomes imortalizados por esse período. Mais ainda as suas obras: “A Classe Operária Vai Ao Paraíso”, “Pai, Patrão”, “Antes da Revolução”, “Teorema”, “O Bandido Giuliano”, “Giordano Bruno”, “Os Punhos Cerrados”, “Carta Aberta em um Jornal da Tarde”, etc., etc. Filmes que marcaram a história do cinema, que refletiram questões políticas e valores libertários próprios à sua época, que invadiram salas no mundo inteiro, conquistando o gosto da crítica e sendo sucesso de público.
Certo que, parafraseando Godard - um cinema político deve ser feito politicamente - tendo a desconfiar de muitas dessas obras citadas como políticas, sendo que no plano lingüístico, de construção do discurso estético, permanecem sendo conformistas e moralizantes e, portanto, oportunistas porque se valem de personagens e situações históricas plausíveis para uma constituição de imagem-discurso libertária e não o fazem libertariamente. Ao contrário. Na maioria das vezes, essas obras além de manipular nocivamente a impressão de verdade que o tema possui, são transformadas em verdadeiros dramas burgueses (no sentido estrito do conceito) em que a História ganha dimensões privadas e o ato individual heróico é louvado enquanto o coletivo, negado. Individualização de processos históricos. Utilitarismo. Conformismo. Odeio!
Bem, tudo para dizer que não obstante tal passado glorioso, o cinema italiano anda mal das pernas, ou melhor, da cabeça (mas bem de bolso... porque afinal faz boas, quando não excelentes, bilheterias). A Itália vive um período de centralização cinematográfica (as maiores produtora e distribuidora de cinema, por exemplo, pertencem a Berlusconi) somado ao fato do aumento crescente dos filmes italianos televisivos (realizados para irem ao ar pelas emissoras nacionais. Parênteses: Berlusconi é dono de 3 canais de televisão e agora na condição de Presidente do Conselho, administrará ainda mais 3 canais estatais: RAI 1, 2 e 3). Ou seja, resumindo: a linha cultural da produção audiovisual italiana é berlusconiana, fato que preocupa muito a intelectualidade nacional. Ou seja, tendencialmente prevalece o filme de amor, a comédia besteirol, ou filme policiesco-mafioso.
Mas eis que na semana passada uma onda de otimismo atingiu os cinéfilos: dois filmes italianos foram selecionados para a competição ao Festival de Cannes – “il divo”, de Paolo Sorrentino, e “Gomorra”, de Matteo Garrone (além de terem sido selecionados mais dois filmes para serem exibidos fora da competição). Ambos cineastas under-40 considerados entre os melhores talentos contemporâneos. Sorrentino já está, de fato, entre os meus preferidos da jovem guarda, ao lado de Savério Costanzo ("Private", "in memoria di me"). O seu penúltimo filme, “Le consequenze dell’amore”, é de uma originalidade e pertinência cinematográfica inquestionável (até o uso da trilha sonora é impecável, construído como um discurso estético, e não um complemento emotivo à história). Enfim, fato é que ambos os filmes, "il divo" e "Gomorra", possuem o mesmo ator como protagonista (Toni Sevillo – para mim um dos maiores contemporâneos, inesquecível seu personagem em “Le consequenze dell’amore”), ambos os filmes retratam uma Itália devastada, ambos os filmes são definidos como políticos. “Il divo”, de Sorrentino, conta a história de Giulio Andreotti, grande personagem da vida pública italiana ligado à máfia, e “Gomorra”, de Garrone, conta a máfia do sul da Itália. Em um contexto em que, como já foi dito, a linha cultural do país é berlusconiana, é esperado que o reconhecimento de tais filmes venha acompanhado de uma quase histeria da parte da imprensa esclarecida, na esperança de que a ida a Cannes seja o sinal de que apesar dos pesares a Itália poderá reconquistar o seu histórico prestígio na sétima arte. E mais ainda se este lugar está no pódio do cinema de engajamento social dos anos 60 e 70, que foi compartilhado por todos os chamados mestres do cinema itálico. Eu, particularmente, não assisti ainda a nenhum desses dois filmes (a previsão de estréia em Roma é para depois de maio) e estou curiosa para vê-los. Quero verificar os seus frescores, e problematizar se são obras feitas politicamente ou se são conformistas, se são filhas de “Teorema” ou irmãs dos filmes biográficos da RAI, ainda que os seus motes sejam urgentemente políticos de serem afrontados. Mas fato è que confio em Sorrentimo e Garrone...esperemos que eu não sinta ácaros pelo ar...
Imagens: à dir. Matteo Garrone (filme "Gomorra") e à esq. Paolo Sorrentino (filme "il divo")
sexta-feira, 2 de maio de 2008
Like a virgen
Eu contava animada ao meu colega da faculdade como foi que me livrei da aula chata do professor convidado:
- Pois é, enquanto ele ajustava o projetor, eu saí à francesa... Fala a verdade, ninguém tá na vida para perder tempo com babaquice. O problema foi que andando pelo corredor, eu trombei com o diretor!
Paolo se afundou em um mar de gargalhadas
- che cosa? Me perguntou em lágrimas de alegria
- io camminavo nel corridoio quando ho trombato con il direttore
E Paolo ria, ria e ria. Do que ria? Do meu drama ou da cara do velho diretor de quase oitenta anos de idade?
E só depois fui entender que o verbo trombare em italiano significa trepar, to fuck! E nunca mais cabulei aula nenhuma, nem cruzei com ninguém pelo corredor. Vivendo e aprendendo... o idioma.
- Pois é, enquanto ele ajustava o projetor, eu saí à francesa... Fala a verdade, ninguém tá na vida para perder tempo com babaquice. O problema foi que andando pelo corredor, eu trombei com o diretor!
Paolo se afundou em um mar de gargalhadas
- che cosa? Me perguntou em lágrimas de alegria
- io camminavo nel corridoio quando ho trombato con il direttore
E Paolo ria, ria e ria. Do que ria? Do meu drama ou da cara do velho diretor de quase oitenta anos de idade?
E só depois fui entender que o verbo trombare em italiano significa trepar, to fuck! E nunca mais cabulei aula nenhuma, nem cruzei com ninguém pelo corredor. Vivendo e aprendendo... o idioma.
quinta-feira, 1 de maio de 2008
Pasolini, Duras, e tantas dúvidas
Estou tentando entender maio de 68. Se Marguerite Duras disse que em maio de 68 o sexo corria solto pelas ruas, dignificando assim uma conquista libertária do movimento social da época, Pier Paolo Pasolini corajosamente publicou, em razão de uma manifestação em Roma, um texto na revista L’Espresso (de grande circulação ) no qual fez uma severa crítica ao que para ele seria uma falsa revolução de jovens burgueses. Ambos intelectuais marxistas, artistas de vanguarda, expulsos do autoritário e machista Partido Comunista (Italiano e o Francês). Como não creditar Pasolini? E como não aderir a Duras? Tanta efervescência, tantos nuances de cinza. Para mim ainda é muito difícil compreender maio de 68...
O PCI aos jovens! (Notas em verso para um poema em prosa), Pier Paolo Pasolini
(selecionei alguns trechos)
Sinto muito. A polêmica contra
o PCI tinha que ser feita na primeira metade
da década passada. Vocês meus filhos, estão atrasados.
E não importa que vocês não tivessem ainda nascido...
Agora os jornalistas do mundo inteiro (inclusive os da televisão)
ficam puxando (como acho que ainda se diz na linguagem das universidades)
o saco de vocês. Eu não, meus amigos.
Vocês têm cara de filhos de papai.
Odeio vocês como odeio seus pais.
Filho de peixinho, peixinho é.
Vocês têm o mesmo olhar maligno.
São medrosos, inseguros, desesperados
(ótimo!), mas também sabem como ser
prepotentes, chantagistas, convencidos, descarados:
prerrogativas pequeno-burguesas, meus amigos.
Ontem no Valle Giulia, quando vocês brigavam
com os policiais,
eu simpatizava com os policiais!
Porque os policiais são filhos de gente pobre.
Vêm das periferias, rurais ou urbanas que sejam.
Quanto a mim, conheço muito bem
seu jeito de terem sido crianças e rapazes,
as preciosas mil liras, o pai que também continuou sendo um rapaz,
por causa da miséria, que não confere autoridade.
A mãe calejada como um carregador, ou delicada,
devido a alguma doença, como um passarinho;
os irmãos todos;
(...)
E depois vejam como os vestem: como palhaços,
com aquele pano grosseiro que fede a rancho,
caserna e povo. O pior de tudo, naturalmente,
é o estado psicológico a que são reduzidos
(por umas quarenta mil liras ao mês):
nem um sorriso mais,
nem amizade alguma com o mundo,
separados,
excluídos (numa exclusão que não tem igual);
humilhados pela perda da qualidade de homens
em troca da de policiais (ser odiado faz odiar).
Têm vinte anos, a idade de vocês, meus caros e minhas caras.
Estamos obviamente de acordo contra a instituição da polícia.
Mas voltem-se contra a Magistratura, e vocês vão ver!
Os jovens policiais
que vocês por puro vandalismo (de nobre tradição
herdada do Risorgimento) de filhos de papai, espancaram
pertencem a outra classe social.
No Valle Giulia, ontem, tivemos assim um fragmento
de luta de classes: e vocês, meus amigos (embora do lado da razão)
eram os ricos, enquanto os policiais (que estavam do lado errado)
eram os pobres.
Bela vitória, portanto, a de vocês! Nestes casos,
aos policiais se dão flores, meus amigos.
Popolo e Corriere della Sera, Newsweek e Monde
Puxam o saco de vocês. Vocês são os filhos deles,
a sua esperança, o seu futuro...
(...)
É isso, caros filhos, que vocês sabem.
E que aplicam através de dois sentimentos irrevogáveis:
a consciência dos seus direitos (como se sabe a democracia
só leva em conta vocês) e a aspiração
ao poder.
Sim, as suas palavras de ordem versam sempre
sobre a tomada do poder.
(...)
Vocês ocupam as universidades,
mas suponham que a mesma idéia ocorra
a jovens operários.
Nesse caso,
o Corriere delle Sera e Popolo, Newsweek e Monde
procurariam com a mesma solicitude
compreender os problemas deles?
A polícia se limitaria a levar umas pancadas
dentro de uma fábrica ocupada?
Trata-se de uma observação banal;
e constrangedora. Mas sobretudo inútil:
porque vocês são burgueses
e portanto anticomunistas...
(...)
Falando assim,
vocês pedem tudo com palavras,
ao passo que com os atos, vocês pedem só aquilo
a que têm direito (como bons filhos da burguesia que são):
uma série de reformas inadiáveis
a aplicação de novos métodos pedagógicos
e a renovação de um organismo estatal.
Bravo! que nobres sentimentos!
Que a boa estrela da burguesia proteja vocês!
(...)
O PCI aos jovens! (Notas em verso para um poema em prosa), Pier Paolo Pasolini
(selecionei alguns trechos)
Sinto muito. A polêmica contra
o PCI tinha que ser feita na primeira metade
da década passada. Vocês meus filhos, estão atrasados.
E não importa que vocês não tivessem ainda nascido...
Agora os jornalistas do mundo inteiro (inclusive os da televisão)
ficam puxando (como acho que ainda se diz na linguagem das universidades)
o saco de vocês. Eu não, meus amigos.
Vocês têm cara de filhos de papai.
Odeio vocês como odeio seus pais.
Filho de peixinho, peixinho é.
Vocês têm o mesmo olhar maligno.
São medrosos, inseguros, desesperados
(ótimo!), mas também sabem como ser
prepotentes, chantagistas, convencidos, descarados:
prerrogativas pequeno-burguesas, meus amigos.
Ontem no Valle Giulia, quando vocês brigavam
com os policiais,
eu simpatizava com os policiais!
Porque os policiais são filhos de gente pobre.
Vêm das periferias, rurais ou urbanas que sejam.
Quanto a mim, conheço muito bem
seu jeito de terem sido crianças e rapazes,
as preciosas mil liras, o pai que também continuou sendo um rapaz,
por causa da miséria, que não confere autoridade.
A mãe calejada como um carregador, ou delicada,
devido a alguma doença, como um passarinho;
os irmãos todos;
(...)
E depois vejam como os vestem: como palhaços,
com aquele pano grosseiro que fede a rancho,
caserna e povo. O pior de tudo, naturalmente,
é o estado psicológico a que são reduzidos
(por umas quarenta mil liras ao mês):
nem um sorriso mais,
nem amizade alguma com o mundo,
separados,
excluídos (numa exclusão que não tem igual);
humilhados pela perda da qualidade de homens
em troca da de policiais (ser odiado faz odiar).
Têm vinte anos, a idade de vocês, meus caros e minhas caras.
Estamos obviamente de acordo contra a instituição da polícia.
Mas voltem-se contra a Magistratura, e vocês vão ver!
Os jovens policiais
que vocês por puro vandalismo (de nobre tradição
herdada do Risorgimento) de filhos de papai, espancaram
pertencem a outra classe social.
No Valle Giulia, ontem, tivemos assim um fragmento
de luta de classes: e vocês, meus amigos (embora do lado da razão)
eram os ricos, enquanto os policiais (que estavam do lado errado)
eram os pobres.
Bela vitória, portanto, a de vocês! Nestes casos,
aos policiais se dão flores, meus amigos.
Popolo e Corriere della Sera, Newsweek e Monde
Puxam o saco de vocês. Vocês são os filhos deles,
a sua esperança, o seu futuro...
(...)
É isso, caros filhos, que vocês sabem.
E que aplicam através de dois sentimentos irrevogáveis:
a consciência dos seus direitos (como se sabe a democracia
só leva em conta vocês) e a aspiração
ao poder.
Sim, as suas palavras de ordem versam sempre
sobre a tomada do poder.
(...)
Vocês ocupam as universidades,
mas suponham que a mesma idéia ocorra
a jovens operários.
Nesse caso,
o Corriere delle Sera e Popolo, Newsweek e Monde
procurariam com a mesma solicitude
compreender os problemas deles?
A polícia se limitaria a levar umas pancadas
dentro de uma fábrica ocupada?
Trata-se de uma observação banal;
e constrangedora. Mas sobretudo inútil:
porque vocês são burgueses
e portanto anticomunistas...
(...)
Falando assim,
vocês pedem tudo com palavras,
ao passo que com os atos, vocês pedem só aquilo
a que têm direito (como bons filhos da burguesia que são):
uma série de reformas inadiáveis
a aplicação de novos métodos pedagógicos
e a renovação de um organismo estatal.
Bravo! que nobres sentimentos!
Que a boa estrela da burguesia proteja vocês!
(...)
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